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quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Fantasmas de Marte - Capítulo 6

NÃO VEJO PROBLEMA

Depois do incidente, Anuket e Anúbis seguiram Bastet até uma pensão conhecida da gangue e passaram a noite. Ali as meninas estariam seguras, mas sob forte vigilância até o dia do leilão, após o festival. Anuket exibia o passaporte como foi instruída por seu marido, que era uma espécie de medalha de bronze negro, com o selo real e o nome do dono do escravo. Nesse caso, o nome era Anuket, um hieroglifo de serpente simbolizava a posse, e novamente o nome Anuket. Como identificação, uma tatuagem com seu nome era feito em toda criança de 1 ano na batata da perna direita. A segurança que Anuket sentia era justificada, pois se um guarda verificasse que a tatuagem na perna não estava de acordo com a medalha, os crocodilos jantariam como reis. Anúbis não estava preocupada, afinal, ela se julgava órfã de sua mãe falecida e seu pai biológico, um homem simples e amável, embora seu amor fosse direcionado às esposas infiéis de seus vizinhos, nunca a seus filhos. Sua casa parecia um orfanato, brigas e disputas pelo poder eram comuns, e Anúbis não teria dificuldade em trocar um pelo outro. 

 - Esse é seu quarto, cama, lavatório, baú, mesa e cadeira. O toque de recolher é às 8:00, para uma menina como você. Pode sair quando quiser, mas nunca suba nos andares superiores, e nunca converse com estranhos, como aquele fazedor de bonecas. Tem muitos como ele por aqui. Eu não vou estar por perto o tempo todo, mas qualquer pessoa que use uma pena de pavão no brinco é minha amiga, pode confiar. Toma aqui, sabe usar isso? - Bastet põe a pesada bota de couro de crocodilo na cadeira, fazendo um barulho alto e assustando a menina. Levantando a sua túnica devagar, a surpresa da menina vira terror, ao ver as diversas cicatrizes na perna da bela moça. Um anel marcado em seu tornozelo denuncia que uma vez esteve acorrentada a grilhões de ferro muito apertados. Em sua pele macia, diversos cortes e marcas estranhas, em forma de gota, queimaduras antigas. Da coxa, Bastet desamarra uma bainha de couro cinza e uma pequena adaga, a lâmina era uma reserva em casos de emergência. A Lâmina sem ferrugem tinhas algumas manchas de humidade, prova de seu uso.

 - Não. Eu fui treinada em costura. - Por motivos óbvios, os camponeses tinham apenas 1 ano de estudo intelectual. O resto de suas vidas era dedicado à aprender uma profissão que servisse às necessidades dos nobres. Os mais comuns eram cozinha, costura e metalurgia. Os Pedreiros eram semi-nobres, considerada uma profissão divina, pela importância que as pedras tinham naquela cultura.

 - É muito fácil. O mais importante é que você nunca se esqueça disso: "Se você hesitar um segundo, você morre e o outro cara vive. A escolha é simples". Vou lhe ensinar os três movimentos básicos. Segure a adaga com a ponta para cima , cotovelo junto ao corpo, lâmina paralela ao piso. Faça a estocada e grite, mostre os dentes e olhe nos olhos. Antes de puxar a lâmina para fora da barriga da múmia, gire a lâmina, assim ele não terá chance. Agora, segure a lâmina para baixo, se a múmia tiver uma lâmina também, espere ele atacar primeiro, pule para trás, gire e esfregue a sua lâmina no braço dele, assim ele vai soltar a lâmina dele. O terceiro é a finalização, com a múmia ferido ou sentado, levante a lâmina e enterre na cabeça dele. Cuidado, não vire a lâmina porque ela quebra. Não se preocupe, os guardas não vão lhe prender, eles não ligam.

A pequena Anuket experimentava um sentimento novo, confuso. A menina estava paralisada, em êxtase, pela admiração que tinha por aquela forte e bela mulher. A cada movimento ensaiado, o perfume de Bastet se espalhava pelo quarto, suas jóias brilhavam na luz da pequena vela, seu cabelo voava pelo ar, se desarrumava e então voltava a pender atrás da cabeça, obediente. Tão independente, tão segura, tão sabida. Antes de ir embora, finalmente as palavras saltam em desespero:

 - Eu vou te ver de novo?

  - Pode apostar. - Bastet sentiu o calor e admiração da pobre inocente, e sentiu mais uma coisa, também novidade para a sofrida guerreira. Sentiu vontade de sorrir. Foi muito estranho, a sensação era a que seu rosto iria trincar e se partir em vários pedaços, como uma boneca de louça dos nobres. Mas não podia se deixar levar pelas emoções, aquilo era trabalho.

No quarto ao lado, Anúbis pulava na cama de palha de porta aberta, e aquilo irritou Bastet. - PARA COM ISSO! - A menina caiu sentada, olhando para o chão. Foi a primeira vez em sua vida que alguém lhe deu uma ordem. Surge então no corredor Anuket, que seguia o cheiro de sua benfeitora. Ao ver Anúbis sentada, teve uma idéia.

 - Anúbis, Bastet disse que podemos sair junto com uma mulher de brinco de pavão. Vamos até o bar assistir a dança.

 - Eu tenho sede, o ar aqui é parado e fumacento. Eu sinto falta do sol. Será que falta muito para o festival?

 - O que deu em você? Já quer voltar? Ainda tem muito pra aprender aqui. Agora nós podemos sair em segurança, não tem problema. - Anúbis não conseguiu dormir à noite, aquele homem mau e a adaga verde lhe deram pesadelos. Mas Anuket tinha razão, não era hora de desistir, o pior já passou.

Descendo as escadas, imediatamente a mulher de brinco de pavão segura Anúbis pelo braço.
 - Onde vocês vão?
 - Queremos ver a dança.
 - Vocês perceberam que as lanternas dos bares tem papiros coloridos? Vocês podem ir nos bares amarelos e azuis. Nunca nos vermelhos. Somente homens vão nos bares vermelhos, e eu não quero ter que salvar vocês do bar vermelho, entenderam bem?
 - Amarelos e azuis. Entendemos.

O andar térreo da pensão era um bar amarelo, então Anuket começa a tirar conclusões do que vê. Era um bar calmo, onde as pessoas conversavam enquanto comiam. A música vinha do outro lado da rua, o bar azul. Ao fim da rua, o bar vermelho com dois homens grandes na porta, um arqueiro e outro com a longa espada curva presa na cintura e um pequeno escudo redondo no antebraço esquerdo. Os brincos de pena de pavão estavam por toda parte, parece que aquela rua era segura para explorar. Anúbis, como sempre, não entendeu nada.

 - Que bar chato. Mas eu vou pedir água.  - A moça atrás das meninas estala os dedos e um pequeno menino magro, de olhar parado e sem vida, traz um copo de barro seco ao sol com água. A menina bobinha se espanta com a rapidez, e começa a rir. Anuket começa a juntar os pedaços do quebra-cabeça. A intenção daquele salvamento de Bastet não estava claro, ainda. Será que as meninas eram hóspedes da gangue do pavão, ou será que aquela seria a prisão mais confortável da cidade? Anúbis se diverte com a atenção: - Você viu Anuket? Eu pedi água e o menino me trouxe imediatamente. Isso é tão legal!

 - Você pode pedir comida e bebida à vontade, Dona Sekhmet vai cuidar bem de vocês até o festival. Por isso, tomem o cuidado de não sair dessa rua, voltem para o toque de recolher, e quando for o dia do festival, nós levaremos vocês lá e vamos te proteger dos nobres também. Já foi tudo arranjado, fiquem tranquilas. Esse passaporte é uma ofensa para alguns de nós, menina, esconda dentro da túnica, para seu bem.

 - Desculpa. - Anuket começa a montar a imagem na cabeça. É muita informação de uma vez só, ela precisaria de mais tempo para assar o pão, mas seus dedinhos inteligentes já lambiam a tigela. As marcas nas pernas de Bastet eram castigos sofridos por escravas desobedientes. Dona Sekhmet havia liberto Bastet, e era dona da rua toda, e sua gangue de pavões fazia a proteção. Mas muitas perguntas ainda não tinham resposta, por exemplo quem é Dona Sekhmet, e o que ela ganha com isso? Anuket podia ser apenas uma menina camponesa, mas se seu Pai lhe ensinou alguma coisa na vida, é que nada é de graça. Quando ela queria um favor do velho bêbado, a conversa deveria começar com uma oferta de paz, naquele caso, um copo gelado da cerveja do fundo do barril, a parte menos aguada, um pouco acima do lodo de lama do rio e fermento de levedura. - Por favor, eu queria conversar com Dona Sekhmet e agradecer a gentileza.

Como prova a risada histérica da jovem guarda, a oferta foi muito preciptada. E além disso, Anuket não tinha nenhum presente para a gorda rica, pelo menos, nada além de si mesma. Ela então pega Anúbis pelo braço e atravessa a rua até o bar azul. Ali sim era lugar para as jovens viverem um pouco. Muita música, muita bebida, o palco redondo no centro era visível a todos, que exibia danças e peças de teatro 20h por dia. Naquela sociedade de poucas morais, uma era respeitada desde tempos pré-históricos. Adultos bebiam cerveja, mas as crianças somente poderiam beber mosto. Mosto é um líquido muito doce, parte intermediária do processo de fabricação da cerveja, antes da fermentação. Era muito nutritivo, e as crianças adoravam. "Assim não seremos alvo da fúria de Rá", diziam os anciãos, que não havia nada mais desumano e revoltante aos olhos dos deuses do que ver uma criança embriagada.

ATHENAS, TEMOS UM PROBLEMA

 - Comandante ! Comandante ! ACORDA! (tapa) - Perséfone desesperada, dá um tapa na cara do comandante que salta da cama em suas roupas de baixo, procurando na cintura uma arma que deveria estar ali, se seu pijama fosse um uniforme militar.

 - Pelo amor de Zeus mulher, o que é isso?

 - Plutão. Plutão von Hades. Venha rápido, eu não sei o que fazer. - O choro e a fala apavorada foram prova suficiente que havia acontecido um desastre. De um salto, esquecendo-se de vestir as calças, Comandante Júpiter agarra seu revólver e corre escotilha a fora na direção apontada por Perséfone. A poucos metros de distância, seguindo o corredor circular estavam o Capitão e Sr. Baco, chutando e arranhando a escotilha do geólogo. Dr Hypnossono ficou na porta de seus aposentos, assustado sem saber o que fazer.

 - O que foi? Capitão, que alarme é esse?

 - Comandante, rápido. A 2 minutos atrás recebi um alerta de falha ambiental no quarto do Sr. Hades, perda de pressão e temperatura. Parece uma falha de software. Eu desliguei o computador e Sr. baco está tentando reiniciar o sistema.

 - Comandante, parece que um sensor defeituoso detectou um incêndio no quarto do Sr. Plutão, e acionou o sistema de purgação. Toda a atmosfera do quarto foi ventilada para o espaço. Não podemos entrar antes de equalizar a pressão. - Sr. Baco abriu o painel da porta e acessou o painel de manutenção do computador. O comandante não tinha mais tempo a perder, devia agir rápido e preciso, no estilo militar.

 - Todos prestem atenção. Eu quero todos dentro dos seus quartos. Perséfone, vai ver se seu pai está bem. Sr. Baco, de volta para a cabine, quando eu der o sinal, reverta o sinal de incêndio e pressurize a nave. Capitão, conto com o senhor para me pegar quando eu abrir a escotilha. AGORA!

- 3 minutos comandante. - avisa Perséfone entrando no quarto de seu pai, que aparenta estar roncando.

Assim que o barulho da escotilha da cabine denuncia seu fechamento hermético, o comandante dá um tiro no sensor de incêndio da nave, imediatamente acionando o sistema de purgamento atmosférico nos decks centrais, onde fica o reator. O Ar faz um barulho alto, um furacão circular tenta assoprar o corajoso militar, que nesse momento só se preocupa em proteger sua roupa de baixo, "maldita hora de ser pego sem calças", pensa ele. Quando a pressão atmosférica se aproxima do vácuo, seus tímpanos estouram em uma dor alucinante, que quase lhe faz desmaiar. Com muito esforço, o comandante segura um pequeno sopro de ar, e finalmente o painel muda de vermelho para verde, destrancando a escotilha. Rapidamente o militar identifica o gelado Dr. Plutão, inconsciente no chão, e sinaliza para a câmera da cabine para que Sr. Baco repressurize toda a nave. Imediatamente o ruído de ar enche o ambiente, mas não a tempo de evitar que o comandante perca os sentidos. Apesar de ter prendido o ar, ele acaba escapando pelos sinos que ligam o nariz aos olhos.

Momentos mais tarde o Comandante acorda com Perséfone de novo:
 - A não, esse sonho de novo não. Ainda estou dolorido dos tapas passados. O que aconteceu com a minha voz? Estou meio surdo?

- Vai passar em 1 semana, meu herói. - ganha um beijo na testa. - Não foi sonho, o senhor arriscou a sua vida para salvar o meu amigo, e conseguiu. Ele vai viver. A exposição prolongada ao frio causou queimaduras, mas ao mesmo tempo preservou seu corpo contra os danos do vácuo. Eu deixei ele em coma induzido até baixar a pressão no cérebro. Não teve tempo suficiente para formar cristais de gelo, graças a Hércules, então suas células puderam descongelar corretamente. O Capitão e o Sr. Baco von Dionísio estão analisando o problema, enquanto isso, todos nós deveremos dormir na estufa, alternando turnos.

 - Muito bem. Bem. Alô? testando. testando. 1, 2, 3, som. som.  - Enquanto ele esteve inconsciente, a mente do comandante juntava os pedaços. Uma falha catastrófica, um alarme ensurdecedor, Perséfone distribuindo tapas, e um só homem não estava lá. Dormindo? Impossível.  - Perséfone, eu sinto muito, traga aqui o Capitão e seu Pai. Teremos uma conversa séria.

 - Si - sim senhor. Eu entendo. - Perséfone não era telepata, mas já sabia. Finalmente aconteceu. "Pelos deuses, pai, o que você fez? Pra quê", pensa ela, segurando as lágrimas. O Doutor também sabia, que cedo ou tarde, seria descoberto. O plano B era ainda mais óbvio que a tentativa de homicídio, embora só agora o Capitão tenha percebido. "Ainda não é a hora certa, se for para o olho se beneficiar dessa missão, preciso acabar com isso." pensou o militar, sacando Dona Rita, sua avó querida, e carregando-a com munição anti-pessoal de ponta oca.

 Ambos chegam ao mesmo tempo ao laboratório do Doutor, Perséfone ao ver a arma não consegue mais conter o choro. Capitão, que não era sem coração, pede silêncio a moça, para que não estrague a tocaia. Ele mostra o botão de choque da arma, que é capaz de paralisar todos os músculos de uma pessoa, sem matá-lo. A seguir, ele abre o painel de manutenção e pede acesso às câmeras internas, para planejar seu próximo movimento. Para sua surpresa, estavam offline, o doutor deve ter arrancado. Ele teria de entrar rápido e tomar uma atitude em uma fração de segundo. Mas antes que pudesse abrir a porta, Perséfone tem uma idéia. Ela pede ao capitão uma bateria de choque, que de improviso pode ser usada sem a arma, mas teria o efeito de imobilizar ambos, quem segura a bateria também. Esse risco era aceitável para qualquer filha de um maluco, mas não para o chefe de segurança.

O Capitão então acompanha a idéia, mas acha perigoso. Se a médica tiver um troço, quem vai cuidar da tripulação? Então ele pega uma bandeja de comida do refeitório. A Moça entende.
- Papai, sou eu, Perséfone. O Capitão foi dormir, o Comandante está desmaiado, então eu te trouxe seu jantar. Deixa eu entrar?

O blefe funciona, a escotilha se abre e o assustado doutor deixa sobre a mesa a adaga ritualística, em forma de serpente, com a qual pretendia acabar com seu sofrimento e diz:
 - Sangue de Hércules te cubra filha.

 Antes de qualquer reação, para o espanto de todos, o enorme braço do Capitão surge por detrás da moça e Dona Rita entrega seu beijo de boa noite. -Aos doze trabalhos, doutor. (zap).

 - Hoje e sempre, papai. - A moça abalada, suspira aliviada. Seu pai maluco ainda está vivo, apesar do canhão do monstruoso Capitão. Ele tenta esconder seu desapontamento, Dona Rita ainda guardaria seus segredinhos por mais algum tempo. Ambos levam o Doutor inconsciente até sua maca na enfermaria, e o Capitão ativa as amarras de emergência. O Comandante já está sentado, ainda com o turbante de faixas na cabeça, com um tufo de cabelo arrepiado saindo por cima. "Pareço um troll", pensa ao se olhar no espelho cirúrgico.

 - Acorda ele. - Perséfone injeta um líquido nas veias do seu pai, que acorda assustado. - Doutor, eu estou extremamente decepcionado com o senhor. Eu quero dizer, todos nós sacrificamos muito para que essa missão seja bem sucedida.

 - Sacrifício? Hahaha (risada maligna), o que você entende de sacrifício? Vocês não entendem, seus medíocres, bárbaros inferiores. Um filho de Hera contaminou minha filha, a filha de Hércules. É o fim, está tudo acabado. Isso tem que acabar aqui.

 - Exatamente. - para o espanto de todos, que olham atônitos para o Comandante. - É o fim. Acabou. Parabéns, doutor, agora estamos na mesma página. Seja bem vindo.

 - Mas, mas, o que? - Balbucia o confuso doutor.

 - Você não entendeu? O senhor mesmo me disse, lembra-se? Lá na Cabine. O Senhor me disse, os filhos de Hércules devem proteger sua pureza contra as forças do mal, que estão por toda parte. Eu achava que você estava se referindo ao senhor Plutão von Hades, mas agora eu sei. Nós, todos nós, éramos o mal, impuros, contaminados, perdidos não é mesmo. Bom, olhe-se no espelho doutor, e você verá o mal, um homem pequeno e perigoso, culpado de tentativa de homicídio e sabotagem de equipamento militar.

 - Não. NÃO. NÃO PODE SER! Filha, minha adaga, minha adaga!.

 - Não papai, você ainda não entendeu, ouça mais um pouco, estamos aqui para te ajudar, confie em mim. Eu sempre serei sua princesa.

 - Não Doutor - Completa o Comandante pegando na mão do confuso e assustado idoso -, você não vai fugir, não tem lugar nenhum nessa nave que você possa fugir. Encare feito homem, a verdade é uma só. Você morreu, como filho perfeito de Hércules. Eu te trouxe de volta a sua nova vida. Seja bem vindo à raça dos Bárbaros medíocres. Eu posso confiar em você?

O Doutor se contorce de dor, apesar de estar tudo bem com ele. É uma dor mental, que nenhum remédio físico é capaz de curar. A culpa, o ódio, a frustração, tudo ao mesmo tempo como um milhão de vozes ecoando em sua consciência. Finalmente um pensamento coerente:" Como pude errar tanto? Eu estava seguindo ao pé-da-letra as minhas escrituras sagradas. Minhas? MENTIRAS."

 - Comandante, agora eu entendo. Eu tentei tanto ser fiel às escrituras, e acabei interpretando tudo errado. Preciso de ajuda, de aconselhamento espiritual.

 - Não olhem pra mim. - Diz Baco, apesar de ninguém ter olhado.

 - Doutor, Eu conheço a pessoa ideal para esse serviço. Ele ainda não saiu muito de seu quarto, mas eu confio a minha alma nas mãos dele. Doutor Hipnossono von Emmanuel foi o médico que me curou do meu estresse pós traumático quando voltei da guerra. Ele vai te ajudar, ele entende de todas as religiões, e vai te abrir muitos caminhos. Sorte minha ele ser arqueólogo e antropólogo, senão eu não teria uma desculpa para trazê-lo também.

Pai e filha saem abraçados até a porta de Hypnossono. Ao tocar a campainha, a porta imediatamente se abre. A sala está um pouco escura, a meia luz. O cheiro de incenso e tabaco cria a atmosfera. Em um canto da sala, um pequeno altar e a estátua de um homem alto e magro, com uma túnica azul e branca, decorada de ouro, com seus pés cobertos com rosas. Seu rosto branco como a neve sorri, seus longos cabelos e barba bem aparada ardem em um vermelho vivo. As velas vacilam e tremulam, como se estivessem conversando entre si. O doutor está concentrado, e faz o gesto para se sentarem. O medo de pai e filha perturba a paz do ambiente.

 - Não tenham medo, eu estou aqui para ajudar. Eu posso provar, com uma pergunta. Eu teria todo esse trabalho se minha intenção fosse atrapalhar? Seria mais fácil sabotar a frágil nave de vocês, não? Mas não se preocupem, como eu disse, nós estamos aqui para ajudar, e você doutor, sabe melhor que ninguém que não se pode viver no vácuo do espaço.

 - Eu sei, estou muito envergonhado.

 - Que bom, que bom. Seu sentimento de arrependimento é o começo de sua cura espiritual. Saiba, doutor, que sua antiga religião não é de toda errada. Mas ela serviu ao seu propósito a muitos e muitos anos atrás, em uma época de barbaridades e poucos arrependimentos. Ser fiel às suas crenças não pode ser mais importante que ser fiel ao trabalho do Criador, não concorda comigo?

 - Quem é aquele homem na estátua?

 - Quem você acha que é? Adão? Hércules? Moisés? Hera? Hórus? A resposta é difícil de entender, então por enquanto aceite apenas que esse homem vive, sofre e morre para salvar a humanidade de seu caminho auto-destrutivo, onde quer que ela vá. Como o senhor bem sabe, o mesmo homem que é capaz de amar e construir, também é capaz de odiar e destruir. Deus, o Criador, o Senhor dos seus deuses menores, deu a vida e o livre arbítrio a todas as suas criaturas. Mas Deus não deu o conhecimento todo de uma vez. É da responsabilidade de todas as criaturas do Universo, viverem, aprenderem e descobrirem qual é o sentido da vida, o que significa amar, porque é tão importante respeitar e proteger a vida, mas também porque não é preciso temer a morte. Eu vou lhe contar uma história. Por favor ouça com atenção.

Nesse momento, o Capitão que tinha sido encarregado de ficar com um olho no gato e outro na sardinha, montava guarda fora dos aposentos do doutor religioso. "Esses malucos vão acabar me ferrando, não foi fácil apagar a tatuagem das costas da minha mão. Essa missão tem que dar certo, quando chegar a hora." pensou ele desconfiado, e então veio a idéia de dar uma espiadinha através do console de manutenção. O capitão acessa as imagens e pede o áudio pelo Closed Caption, para manter tudo discreto.

Continua doutor Hypnossono, embora sua voz de tempos em tempos se modifica em tonalidade e sotaque. Sua presença é estranha, como se não tivesse ninguém ali, e de repente parece que a sala está cheia de outras pessoas. - No início era o Verbo. Na sua Bíblia, como em muitas outras, está escrito que Deus fez o mundo em seis dias e descansou o sétimo. Um dia para vocês é uma revolução da Terra em volta de si mesma - O mais comum era chamar o planeta de Gaia. A denominação Terra era muito antiga, pouco usada.- Mas Deus não mora na Terra. Um dia para Deus contém infinitos dias humanos. Vocês meus pequeninos - sua voz muda para uma forma mais feminina - tão atarefados, sempre com pressa. Sua vida é tão curta, sim, mas nem por isso precisa de todo esse desespero. Veja, o corpo humano como vocês conhecem, sofreu muitas evoluções ao longo das eras, e também as almas de vocês. Comparado com antigamente, na época de Hércules que você tanto admira, os corpos eram mais grosseiros e rudes porque as almas daquelas pessoas eram grosseiras e pouco evoluídas. Está me acompanhando? - A voz volta ao normal.

 - O que isso tem a ver conosco? Pergunta Doutor Saturno, querendo mostrar que compreendeu mais do queria em uma vida.

 - Você, Saturno, cometeu um crime contra a vida, porque você acreditava estar seguindo a sua religião. Mas o senhor não conhece a origem da sua crença, e por isso está perdoado. Mas por favor, é importante que eu continue, para o seu bem. - O tom de ameaça foi imediatamente absorvido pelo teimoso idoso. Sua filha estava maravilhada com a situação, e apertou a mão do pai. Ela sabia que quando o velho sentia medo, seu brilhante cérebro científico tomava o controle, mas essa não era a melhor hora.

 - As suas origens são as mesmas que todos os outros humanos em seu planeta. O corpo que vive em Gaia é humano, mas as almas são pura energia, vida imaterial, sem forma. Os titãs que seu Hércules derrotou realmente existiram, e foram derrotados, mas não as suas almas. Os seres que você tanto teme, doutor, estão vivos entre vocês, e eles tem a forma humana. Demônios, que são almas inferiores, perdidos em seus pecados de orgulho e vingança, caminham entre vós. Eles se parecem com vocês, falam como vocês, alguns lideram vocês. Seus corações negros só conhecem o ódio e o orgulho, e a intenção deles é o de fazer um exército de almas penadas, almas sem vontade própria, para destruir a criação do Senhor, nosso Deus. Mas não se preocupe, todos a bordo dessa nave são bons de coração, e minha missão aqui hoje é despertar o verdadeiro amor nos seus corações.

 - Por favor, continue. - Agora, mais calmo, o doutor começa a aceitar a mensagem como sendo uma verdade importante, talvez a maior descoberta de sua carreira científica.

 - Você meu caro doutor, se julgava superior ao seu colega baseado apenas no seu nascimento. Isso está longe de ser verdade. As verdadeiras almas superioras não habitam o seu mundo. Vocês ainda não estão prontos. Para ser considerada alma evoluída, você deve entender o verdadeiro significado do amor. O mesmo amor que você sente por sua filha, você deverá sentir pelo seu colega, por todas as criaturas de Deus, amigos e inimigos por igual. O Amor não permite distinções, julgamentos, preconceitos. Quando o senhor for ler as suas escrituras sagradas, pense no amor. Existe muita boa vontade e muito esforço foi colocado nessas escrituras, mas lá atrás na época em que foi feita, ninguém sabia o que era amor. Eram mais como animais, e o amor era só mais um instinto, sem muito pensamento consciente. Eu quero que o senhor encontre uma maneira de amar seu colega, da mesma forma como o senhor ama sua filha e a si mesmo. Você compreende a importância disso?

 - Devo ser sincero, não.

 - Acho que o senhor compreende melhor do que está me dizendo. Agora que o comandante te libertou do dogma e do ritual, use sua nova liberdade para estudar novos meios de evoluir sua compreensão das coisas. Estude outras escrituras sagradas. Tente entender porque Hera pôs a serpente no berço de Hércules. Hércules viveu muito tempo depois disso, e tudo isso se passou nos planos do Senhor. Existem diferentes verdades para diferentes povos, e só existe uma mentira. Uma única mentira. Todos no seu planeta acreditam que seus pecados serão perdoados quando morrerem. A verdade que eu revelo a você, doutor, é que a forma como você vive sua vida, dia após dia, é o que será medido e julgado, não somente a forma como morre. E se sua vida se resume a obediência cega de escrituras que o senhor claramente não compreende, então será punido por isso. Não no inferno, e nem no céu. Mas de volta na Terra, sempre de volta na Terra. Lembre-se, da Terra veio e para a Terra retornarás.  - A presença vai embora. O doutor Hypnossono está visivelmente cansado e pede um copo de água, oferecido por Perséfone.

 - Doutor, eu ainda tenho muitas dúvidas...

 - Eu sei, meu amigo. Mas essas coisas levam tempo. O mais importante é que você esteja comprometido com a verdade. Deus é todo poderoso, e soberanamente bom e justo. Dizer que Deus prefere uma de suas criações sobre a outra é dizer que Deus é burro e errou, isso não faz sentido. Dizer que Deus destruirá o mundo, e ressucitará os mortos, é dizer que Deus criou o Universo totalmente ao acaso, jogou com os dados da sorte, e isso é absurdamente errado. Acaso não existe. Toda consequência tem uma causa. Procure pela causa de tudo e encontrará a Deus.

 - Vamos Papai, deixaremos o doutor descansar. Muito Obrigado, eu estou toda arrepiada.

 - Essa foi a primeira verdade que você disse na presença de seu pai, Perséfone. Adquira esse hábito saudável, ele precisa de você, não do que você mostra a ele.

O Capitão esconde o painel, mas não consegue disfarçar sua cara de espanto. O comandante vem buscar o doutor para escoltá-lo de volta a seu laboratório, agora livre de adagas. Sr. Baco interrompe:

 - Desculpa comandante, temos um problema. A nave foi projetada para ventilar um compartimento em chamas e conservar o oxigênio. Mas o senhor ventilou todo o deck, e acabou com nossas reservas de oxigênio. Segundo o computador, não temos oxigênio para voltar. Devemos encontrar uma fonte de 200 metros cúbicos de oxigênio no planeta para voltar.

 - 200? Em Marte? Meu Deus. Avise Athenas que temos um problema, talvez eles mandem um tanque de emergência, podemos esperar alguns meses reciclando o ar da estufa. Em último caso, três pessoas mais a Doutora Perséfone podem retornar em estado de coma induzido. Se chegar o momento, tiramos a sorte para ver quem fica.

- Nesse caso, serei eu e mais um. - completa Baco. O Capitão sabe que isso não é problema, sua missão resolveria a falta de oxigênio eliminando os narizes infiéis. Mas as palavras de Hypnossono mexeram com suas crenças, alguma coisa começa a despertar no seguidor do olho.

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