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sábado, 15 de novembro de 2014

Fantasmas de Marte - Capítulo 3

O INCIDENTE

Na manhã do dia seguinte, de volta ao centro de controle da missão, a tripulação se reúne para o briefing marcado às 8:00h.

 - Estamos todos aqui? - pergunta o comandante.

 - Senhor, estão atrasados Sra Perséfone e Sr. Plutão von Hades. - O Capitão também notou a ausência de Baco von Dionísio, mas como dizia o ditado: "É bom demais para ser verdade".

 - E o Sr. Baco, posso ver. Como vocês esperam que cheguemos até Marte se antes de começar já estamos atrasados? Eu não acredito nisso.

 - Senhor, devo colocar meus homens nas ruas? - O capitão poderia muito bem tomar suas próprias decisões, se quisesse, afinal o Comandante tinha uma patente inferior. Ora, o Capitão poderia dominar o mundo se quisesse. Mas os militares tem uma filosofia de vida acima do bem e do mau, sem levar em conta orgulhos e desejos, acima de tudo vem o dever. E nesse momento, seu dever era de fazer tudo o que o filhinho almofadinha do presidente quisesse.

 - Obrigado Capitão, mas acredito que tropas militares revistando casas e ruas pegaria muito mal para nossa imagem como missão de paz. Os homens do presidente cuidarão disso. - Um pensamento lhe passou pela cabeça, quando foi a última vez que ele disse a palavra pai? Uma noite chuvosa, um relâmpago, uma limousine indo embora, o vidro da janela subindo, a mão do sargento em seu ombro. As lembranças mais difíceis de esquecer são as piores.

 - Sr. Júpiter von Zeus, hoje de manhã eu passei pelo quarto de hotel de minha filha, ela me disse que se atrasaria uns minutos devido a uma indisposição estomacal. Como o senhor sabe, somos membros da Congregação Renascidos de Hércules, e essas comidas artificiais da cidade nos fazem mal. - Pobre Dr. Saturno Cronos, em sua inocência de pai amoroso e religioso fiel, nunca passaria pela sua cabeça que sua filha na verdade passou a noite dançando e bebendo na companhia de seu afeto secreto, Dr. Plutão von Hades. Aliás, essa não é a pior parte. Dr. Plutão é filho de pais Troianos, idolatravam Hera, a mulher que tentou matar Hércules no berço com duas serpentes. Algumas vezes chegou a desconfiar, mas imediatamente sua fé e devoção os fazem cair de joelhos e pedir perdão pelos pensamentos impuros.

 - Não precisa ser evangélico para passar mal com essa comida de hotel, doutor. Fique tranquilo por favor. - Não somente o comandante, mas todos no planeta tinham muito afeto e respeito pelos Renascidos de Hércules. Não respeito intelectual, é claro, pois eram considerados loucos e crianças inocentes, achar que Hércules voltaria a nascer para lutar contra os titãs do mundo de novo. Mais um respeito como uma amizade, uma confiança de que são inofensivos, apesar de um pouco reclusos e de um certo ar de superioridade.

 - Capitão, Comandante. Estou preocupado com Baco. Sabendo de seu histórico de abusos, eu sinto que ele pode ter ido longe demais dessa vez. - Dr. Hypnossono sabia, através de sua capacidade mediúnica, que certas pessoas tem uma habilidade de sentir coisas que não vemos. Ele não sabia definir com clareza científica como funciona essa habilidade, outrora conhecida como "Oráculo de Delfos", e nunca ousaria revelar a ninguém sua descendência direta do Oráculo. Conta a lenda que o Imperador Alexandre XLVI consultou o Oráculo pouco antes da Batalha de Waterloo, e devido ao resultado desastroso, sua credibilidade foi destruída e o grande templo demolido em ruínas. "Deus nos usa de Seus instrumentos, devemos fazer a Sua vontade." dizia Hypnossono para si mesmo.

Entra na sala Perséfone, com uma aparência horrível, olheiras, a voz rouca, o cheiro de colônia misturado com cigarro e cerveja ransosa, que na sua pressa esquece de fazer a saudação característica da sua fé para seu pai, que nesse momento está em dúvida se deve sentir pena da filha, ou vergonha.

 - Senhores, desculpa o atraso, eu não dormi direito, meu pai já explicou porque, vamos prosseguir.

 - Sangue de Hércules te cubra, filha.

 - Aos 12 trabalhos hoje e sempre, pai.

 - Onde está o Dr. Plutão von Hades? - Todos já tinham entendido perfeitamente tudo que havia acontecido na noite anterior, exceto é claro, o inocente e religioso pai orgulhoso.

 - Eu vi ele estacionar o carro quando entrei, daqui a pouco ele estará aqui. O que eu perdi da reunião? - tentando desviar o assunto como sempre, já que pediu para o geólogo que aguardasse uns minutos lá fora, assim os dois não seriam vistos juntos.

 - Então vamos assumir que Sr. Baco von Dionísio realmente precisa de ajuda para chegar até aqui, como sugeriu Dr. Hypnossono, com licença que preciso fazer uma ligação para a segurança do presidente, vamos adiar a reunião para as 10h, acho que será o suficiente. - Duas coisas que o comandante odiava muito, ligar para seu pai, e fazer papel de incompetente na frente de todos. Baco vai pagar.

 - Senhor Presidente, temos uma situação com o Sr. Baco von Dionísio, preciso de ajuda para localizá-lo.

 - Um momento, vou acionar a segurança, não desliga.

 Momentos depois. - Comandante, Sr. Baco não se registrou em seu quarto de hotel ontem à noite, seu celular não atende, seu carro e suas roupas estão intactos. Ele desapareceu.

- FILHO DA MEDUSA. Eu nunca deveria ter confiado nesse imbecil, ele não consegue ficar vivo, quieto, sentado em uma cadeira lendo um livro, até o final dessa que é só, SÓMENTE, a missão mais importante da história da humanidade. É melhor para ele que seus homens o encontrem antes de mim, Sr. Presidente.

 - Calma comandante. Como o Sr bem sabe, vivemos em tempos de paz, apesar dos religiosos. Sr. Baco, sendo Ateu, deve ter se desentendido em alguma briga de bar, e agora deve estar dormindo em alguma lixeira. Vamos encontrá-lo. - Apesar de suas palavras encorajadoras, o presidente nunca se enganou. Finalmente os religiosos conseguiram ferrar com a missão de seu filho, a missão que "enfiaria o dedo no olho dos Deuses", como declarou um dos líderes das inúmeras seitas do planeta. Essa missão era muito importante para o Presidente, já que a colonização de uma terra distante e fora do alcance do poder religioso seria um símbolo de liberdade intelectual para seu povo. "Meu Deus, se o olho de Hórus von Osíris pegou Baco, vamos encontrá-lo amarrado em um foguete com 50Kg de dinamite amarrado no peito." pensou ele, temendo que o maior inimigo da Democracia fizesse mais uma insanidade contra ele. Ataques suicidas entre os membros do olho eram comuns.

De volta à cidade, em um quarto mau iluminado, de paredes escuras e mau cheirosas de tanta humidade, sem janelas, o ar viciado sufocava o machucado e amordaçado Baco, que lutava para não perder a consciência e ao mesmo tempo não engasgar com o sangue que descia pelo seu nariz quebrado. Sendo Ateu, seus pensamentos eram uma mistura confusa de ódio e vingança, marinados no molho do medo e desespero. Nenhum pensamento lhe trazia esperança, "É o fim." dizia ele. Passos no corredor ecoam pelas paredes, um homem parece um exército marchando em sua direção. O homem se abaixa e encara calmamente o rosto coberto por um saco de pano, sua respiração lenta e pesada a centímetros do assustado piloto, como se o próprio Demônio Volcano estivesse ali. Em um movimento brusco, o saco lhe é arrancado da cabeça, o susto quase lhe faz borrar as calças. A luz cega seus olhos viciados na escuridão, ele não reconhece o rosto do agressor, apenas um vulto, ombros largos, paletó marrom um tom mais claro que a pele, cabeça redonda sem cabelos.

 - Senhor Baco, lembre-se de nossa conversa. Se tudo correr bem, nós lhe faremos o homem mais rico do planeta, dinheiro, mulheres, poder, tudo. Você pode ir embora agora. Não preciso dizer que o preço da traição é pior que a morte.

 - Sim, eu juro. Eu juro.

Saindo do quarto mofado, seus olhos ainda sensíveis, parece que ele está em uma propriedade rural abandonada, sabe-se lá onde. Uma velha caminhonete o espera de porta aberta e o motor já ligado. Ele está com muita dor, e sua visão ainda embaralhada, mas era o único jeito de sair dali. Fazia parte da conversa a desculpa convincente de que Baco teria cantado a mulher de um Marinheiro, que então  teria chamado 3 amigos para lhe ensinarem uma lição. Não era a primeira vez, embora nunca com tantos ferimentos. Uma hora depois, em um posto de beira de estrada, uma ligação para o governo, um helicóptero, um leito no hospital.

De volta ao centro de treinamento, pai e filho conversam, fingindo serem completos estranhos. A equipe científica estava preparada, na quarentena, tomando seu terceiro ou quarto banho químico, na esperança de não levar nenhuma peste mortal até o virgem planeta arenoso. O foguete estava sendo abastecido, e o efeito de aurora boreal da contenção magnética da anti-matéria provocava suspiros e gritos animados dos convidados da imprensa, testemunhas de uma nova era de avanços científicos, e talvez sociais, na precária balança do poder na nova Democracia de Gaia, uma guerra fria entre cientistas e religiosos. As discussões eram sempre as mesmas, devemos perseguir a matéria como caminho até a divindade, ou isso seria uma ofensa, que a criatura buscasse ser melhor que seus mestres? 

 - Ele vai continuar mesmo assim? Não parece ser coisa dele... - O Comandante conhecia bem Sr. Baco para saber que ao primeiro sinal de perigo, ele seria o primeiro a se esconder em baixo da cama. Mas dessa vez, sua atitude corajosa seria motivo de desconfiança. Ele teria segundas intenções em prosseguir com a missão, mesmo depois de ter sido dispensado pelos médicos?

 - Sr.  Baco von Dionísio insistiu muito. - Após o fim da guerra santa, quando o Estado e a Igreja foram finalmente separados em dois poderes paralelos, uma das tentativas de pacificar os povos rivais foi o de forçar a formalidade de sempre que for se referir a uma pessoa, seja amigo ou inimigo, era usual a formalidade Senhor(a) Nome von Pai(mãe). Uma pequena massagem no orgulho ferido, mas que trouxe resultados interessantes para a paz. - Além disso, Comandante, eu de minha parte vou permitir que ele prossiga porque, apesar da dispensa médica, ele não tem nenhum ferimento grave, nenhum osso quebrado e nenhum órgão interno rompido. Parece que a surra que ele levou foi apenas para amaciar a carne, seus amigos marinheiros foram muito generosos.

 - Eu diria que se um marinheiro bêbado que não consegue quebrar um braço é um novato muito incompetente. Eu vou escolher acreditar na sorte do Sr. Baco von Dionísio, porque a alternativa é que ele foi torturado para algum fim nefasto. Espero não estar cometendo um erro.

 - Filho, olha pra mim. - "Filho?", a palavra veio como um tapa na cara do Comandante, seu olhar assustado quase derrubou uma lágrima do velho e liso político. O velho tinha um coração escondido em alguma gaveta daquela carcaça blindada? - Eu sei o que você está pensando, que eu arrumei essa missão maluca pra ferrar com você enquanto meus inimigos derrubam o foguete e eu saio de vítima inocente dessa história. Mas eu juro, pelos deuses, pelo o que você quiser, que eu fiz de tudo para proteger você e sua missão. Eu sei que nunca fui seu pai. Na minha cabeça, eu sempre pensei comigo mesmo: "Vou dar ao meu filho o que sempre pedi de meu pai, que ele fosse embora.". É difícil para mim admitir meus erros, mas esse é fácil. Eu vejo em seus olhos, e você pode ver nos meus, que apesar da distância, existe amor entre nós. Eu errei, e você nunca vai me perdoar eu sei. Tive medo, FUI COVARDE, - de repente a conversa discreta chamou a atenção de algumas pessoas do centro - fui covarde em não tentar ser um pai melhor que seu avô, eu sei agora que deveria ter tentado. Mas...

 - Sr. Presidente - o Comandante lutava contra a vontade de abraçar o velho - eu sou o melhor capitão do exército democrático. Mas eu recusei a promoção para Major, e você sabe porque? Porque eu sei que assim que eu botasse um pé no poder, minha herança de família roubaria minha vida. Acho que a covardia também é hereditária.  - O comandante virou as costas para o que agora lhe parecia apenas mais um velho doente esperando um ônibus que nunca viria. O que ele esperava? Depois de uma vida lutando para fechar a ferida, o velho chega com uma faca quente, no dia mais importante de sua carreira? Não, essa conversa não poderia ter tido um tempo pior, não agora.

 - Foguete abastecido, tripulação vestida e imprensa calada. Tudo pronto para seu discurso, Sr. Presidente.

 - Obrigado Capitão. - O velho era mestre em guardar suas emoções para depois, agora ele só precisava de um gole de Absinto 75%, que trazia consigo na garrafinha do paletó. Todos prontos, a saraivada de flashs poderia causar um ataque epilético em uma estátua de mármore. Ele odiava isso.

Na coletiva de imprensa, agora ao ar livre, um professor de ciências tentava explicar o funcionamento da nova tecnologia de viagem espacial sem fumaça.

 - E então, como vocês devem saber, se a anti-matéria tocar a matéria normal, acontece uma enorme explosão. Mas nós desenvolvemos um método de conter a anti-matéria de forma que ela pudesse ser manuseada com segurança. Um recipiente toroidal, que vocês costumam chamar de "rosquinha", aquele bolinho com um furo no centro, faz a antimatéria girar em uma trajetória circular na velocidade de 99% a da luz, provocando um grande campo magnético de forma esférica que envolve todo o recipiente. No eixo perpendicular, centralizado com o furo, surge uma dobra no espaço, uma força resultante para cima normal ao plano, que faz com que todo o aparato fique sem peso, preso no espaço como um carrapato em um cachorro, HARAN, HARAN, HARAN - essa é sem dúvida a risada mais panaca do mundo. Ajeitando o óculos o professor continua a explicação, e a platéia continua a fingir interesse, até que o Sr. Presidente entra na sala, e é recebido com uma salva de palmas, não tanto com respeito mas sim como agradecimento por interromper o cientista.

 - Povo de Gaia, senhores acadêmicos e religiosos, estamos todos aqui, JUNTOS, reunidos para honrar igualmente a história humana e os deuses. - Uma pausa estratégica para ler os olhares da multidão, procurando algum fanático ofendido. Por enquanto tudo bem. - Esse momento é um sonho que se realiza para todos nós, a solda que irá unir nossa civilização como um só povo, UNIDO, - pensando bem, agora que ele está dizendo em voz alta, seu discurso ensaiado no banheiro do hotel ficou meio babaca, pensou ele. - unido em uma causa comum. Pela primeira vez na história, o Homem irá colonizar outro planeta, em paz, para explorar e complementar todas as nossas necessidades, para que nossas crianças nunca mais passem fome, frio ou sede. - Agora ele tinha certeza, esse discurso está horrível, todos sabem que em Marte não tem água. Droga, malditos secretários - Para provar minha sinceridade - O que ele está fazendo? pensou seu secretário, ouvindo as palavras que não estavam no discurso - eu envio ao cosmos o meu único filho, o bem mais precioso que eu tenho na vida, para ele arrisque a dele, e nos traga de volta a esperança de um futuro melhor para vocês todos. Obrigado.

O desabafo inesperado surpreendeu a todos, principalmente o Comandante que teve de se retirar às pressas. Após um breve silêncio, a platéia estupefata começa a aplaudir histericamente, muitas lágrimas emocionadas. Em um breve momento, os olhos parados e robóticos do Capitão ganham vida e buscam alguém na multidão. Um homem em particular lhe chama a atenção. Suas palmas, lentas e ritmadas, testemunham seu descontentamento bem disfarçado. Com seu olhar vidrado, avermelhado, seu rosto escondido atrás dos flashs das câmeras, nenhum sinal foi feito, nenhuma piscada. Como se fosse um telepata, o Capitão compreende a mensagem e acena discretamente com a cabeça, nada precisava ser dito, todos sabiam o que deveriam fazer, os dados da sorte estavam rolando.

Pouco tempo depois, a contagem inicia:

 - 10, sistemas verdes, 7, pré-ignição OK, fluxo de plasma OK, 3, 2, 1, FOGO.

Todos esperavam um estrondo e uma nuvem de fumaça, o ar quente em alta velocidade batendo no peito como os antigos foguetes à Lua faziam, mas para a decepção de todos, apenas um zumbido de baixa frequência, uma bola de luz roxa de ar ionizado se formando ao redor da nave que agora sem peso ascendia verticalmente a uma velocidade constante, como uma bexiga de hélio de uma festa infantil. Em desabafo, um repórter deixa escapar um suspiro - Maldita anti-matéria - que é seguida por muitas risadas dos colegas de profissão. Um homem na platéia não estava entretido. O lenço tirado do bolso do paletó revelava nas costas da mão a tatuagem do olho, ao secar o suor da cabeça careca.

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