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sábado, 22 de novembro de 2014

Fantasmas de Marte - Capítulo 5

EU NÃO SABIA

Finalmente, Heliópolis. "Meu Rá, o que é isso?" todos diziam, quando olhavam pela primeira vez a cidade, sua pirâmide tão alta que as nuvens escondiam parte do cume, que ficava parecendo um trapézio. A cor predominante era o amarelo claro, das rochas de calcário, mas finamente decorada com linhas brancas, metálicas, e pedras azuladas, vitrificadas, que davam um brilho quase sobrenatural a toda a estrutura. Pequenas jóias de todas as cores, rubis, esmeraldas, topázios, diamantes, desenhavam constelações de estrelas, imagens de hieróglifos representando as glórias e as vontades dos Deuses. As poucas palavras escritas do lado de fora eram orações dos deuses, e ordens de obediência e disciplina para Rá.

Anúbis, depois de muito esforço, tinha conquistado a confiança de Anuket. As duas amigas agora compartilhavam seus pensamentos e desejos, de forma inocente.

 - Anuket. Você sabia que seria assim?

 - Não. É por isso que eu vim. Quero ver tudo, saber tudo. Será que nós poderemos andar pelo palácio, ler os papiros?

Um dos semi-nobres conduzindo a charrete ouve o comentário inocente e decide, de forma maliciosa, alimentar as esperanças da pobre inocente. O outro ri baixo para si mesmo
- Menina, mas é claro. Todo camponês é muito bem vindo nos andares superiores. Eu conheço o guarda da biblioteca, o nome dele é Homus. Diga que você veio comparar anotações entre o livro dos vivos e o livro dos mortos.

Anuket poderia ser inocente, mas algo dentro de seu coração dizia a ela que esse homem sorridente na verdade usava a máscara da mentira e traição. A esperta menina, em um trabalho brilhante de detetive, rapidamente organizou as evidências em sua imaginação. Primeiro, Homus não poderia ser um nome de gente, já que era o nome de um molho usado na comida dos nobres. Ela sabia disso através do seu marido tagarela. Segundo, ela sabia que os nobres guardavam o conhecimento para si, e que tinha muitas coisas que o camponês não poderia saber jamais. Mas aquele guarda bastardo e arrogante deu a ela uma informação muito valiosa. Ninguém nunca disse a ela, mas ela sempre soube, do fundo de seu coração, que se era entregue aos camponeses o livro dos vivos, então deveria existir o verdadeiro conhecimento de Rá, O Livro dos Mortos, o livro proibido aos camponeses. O livro do poder.

 Anuket sabia que conhecer é poder, e conhecimento demais era poder demais. O maior temor de todo faraó é a encarnação de Osíris, o deus dos mortos. Dizia a lenda de um dos capítulos do Livro dos Mortos que Osíris em pessoa, viria até a Terra para julgar e levar a todos para o Reino de Rá, acabando com toda a existência física, e jogando nas chamas do reino inferior todos que forem julgados inferiores. A palavra inferior perdeu seu verdadeiro sentido ao longo dos anos, decreto após decreto dos onipotentes faraós. Hoje, não resta dúvida. Nobres são superiores e portanto estão automaticamente salvos da fúria de Osíris. "Pobres camponeses, inferiores, que após essa existência miserável serão jogados aos montes no fogo de Hórus", "Nesse dia deveremos ter cuidado, o fogo de Hórus estará mais quente que nunca.", zombavam dois nobres conversando casualmente na Kahfeteris, o salão de refeições do palácio.

 - Chegamos Anuket, chegamos. Olha como tudo aqui é grande! Ai, que lindo essas estátuas de homens com corpo de gato. Olha!

 A cada comentário inocente e empolgado de Anúbis, os guardas riam cada vez mais alto e mais histéricos, todo ano era a mesma coisa. A ignorância dos camponeses era melhor que qualquer show de stand-up comedy que você puder imaginar. Homens com corpos de gatos, não sabia ela que aqueles eram Esfinges, múmias sagradas dos guardas pessoais de Amon, o pai de Rá. Amon era uma divindade superiora a Rá, e por isso era proibido aos camponeses saberem de sua existência. Diz o Livro dos Mortos que Amon criou o Universo e os vários mundos para Rá governar. Um dia Rá viu um de seus mundos sendo corrompido por outra divindade, Aton, o Deus da Caridade. Amon então criou um exército de bestas e demônios, feitos de pedra, para que Rá mantivesse seu poder. Após a batalha da Gênese, o vitorioso Rá libertou as almas de seu exército e mumificou seus corpos ao redor da cidade, em eterna vigilância. Um lembrete de Rá para seus súditos, que um dia Aton poderia voltar, e a caridade destruiria seu estilo de vida para sempre.

Os nobres normalmente caminham pelas ruas tranquilos, mas não hoje. Após o famoso incidente em que um servo surtou e esganou um nobre que assistia a procissão, o faraó ordenou que nesse dia os nobres não deveriam ser vistos pelos camponeses. Para os servos, ficava a impressão que aquela cidade maravilhosa de pedra e beleza era deserta, habitada por poucos privilegiados. Na verdade, existiam mais nobres que camponeses, o que era uma constante dor de cabeça para o pessoal do setor administrativo. Certa vez o ministro da comida disse ao faraó :
 - Ó deus Rá, ouça a minha preçe, esse ano a colheita foi 18% menor que ano passado, se não reduzirmos a nossa cota da nobreza, os camponeses morrerão de fome! .
O faraó fez aquela cara que cachorro faz quando não entende algo, e riu:
 - E daí?
 O ministro muito envergonhado retrucou:
 - Mas Senhor! Se perdermos camponeses agora, ano que vem a colheita será menor ainda. E no ano seguinte menor ainda. E assim por diante. Eu lhe pergunto, divino mestre, quem irá nos alimentar então?
O Faraó parou de rir imediatamente. Aquele pensamento era lógico, racional e certo. Mas o fato que esse pensamento tenha partido de um nobre inferior foi uma grande ofensa ao todo sábio e poderoso deus encarnado Rá. Só havia uma coisa a se fazer para restaurar a dignidade divina.
- Guardas, façam o que ele disse, e depois o atirem ao covil dos leões.

 - Chegamos finalmente. Precisarei de três, não quatro, banhos nas termas reais para tirar esse fedor carnicento de camponês da minha nobreza.

 - Não se esqueça de queimar as roupas. A contaminação é inlavável. - disseram os guardas.

O alojamento dos servos inferiores era uma espécie de favela. O salão inferior da pirâmide tinha paredes inclinadas a 12°, o que forçava a todas as casinhas de madeira reciclada e couro cru terem a mesma inclinação de 12°. A altura do salão era impressionante, mas não deixava de ser um espaço fechado que deveria ser aproveitado da melhor forma possível. Nos andares inferiores, lojinhas de permuta trocavam mercadorias entre os servos, e bares serviam rodadas de cerveja e destilados clandestinos, feitos ali mesmo com os restos da ração da nobreza, alegrados de muita música e dança característicos da cultura. Tudo aquilo era escuro, barulhento, fedido, e poderia ser muito perigoso.

 - Anúbis, isso tudo é tão lindo. É maravilhoso. Meu sonho está se realizando.

 - É mesmo Anuket, eu nunca mais vou voltar pra casa. Vamos amiga, vamos explorar!

 Agarrando a amiga pelo braço, as duas saem correndo em direção à rua principal, seguidas de muitos olhares maliciosos. "Carne nova no pedaço." pensou uma senhora bem vestida e obesa, duas características muito incomuns entre os servos. Primeiro que acumular riquezas era quase impossível, sem um sistema de economia e dinheiro. Segundo que a ração camponesa, enriquecida com fibras (indigestas) e minerais (da água lamacenta do rio), não permitia ao servo acumular gordura, todos eram muito magros e baixos. Aquela serva bem vestida e gorda deveria ter uma presença na nobreza que lhe permitia acesso ao luxo. Acesso esse que tinha um preço, pagável em mercadoria. Suave, bela e inocente mercadoria.

 - Bastet, eu quero aquela ali. A bonitinha que está sendo arrastada pela outra coisa horrível. - Anúbis não era horrível, dizer isso é maldade. Mas ela era um pouco diferente mesmo. Sua testa era alta, seu cabelo começava a crescer muito para trás, e isso deixava sua cabeça grande. Sua boca era um pouco pronunciada para frente, seus lábios não fechavam, mostrando alguns dentes tortos. Embora a cor da pele não fosse um problema naquela cultura, a pele de Anúbis era seca e peluda, realmente, aquela menina era a mina de ouro dos salões de beleza, se houvesse algum naquele lugar.

De pronto, Bastet, a líder da gangue de Dona Sekhmet, mais conhecida como fornecedora de sonhos, partiu em uma perseguição discreta, se misturando à multidão, vigiando cada passo e ouvindo cada palavra das duas meninas inocentes. As palavras doces e inocentes não causavam nenhuma impressão no coração de pedra da moça, nascida no campo, possuída por um nobre velho e gordo, resgatada pela Dona Sekhmet quando o nobre morreu engasgado em um pedaço de peru e seus bens foram leiloados no mercado. Sim, era uma hipocrisia que depois de tanto sofrimento, a liberta Bastet escravizasse inocentes para tomarem seu lugar. Mas um único pensamento ecoava em sua mente, "eu devo tudo à Dona Sekhmet, tudo. Até a morte".

As meninas passeavam pelas ruas filmando tudo, cada mínimo detalhe, com todos os seus sentidos mandando uma cascata de informações e sentimentos novos para seus pequenos cérebros. Virando em uma ruela menos movimentada, um fazedor de bonecas solitário em sua banca escura, sentado atrás de um balcão com algumas bonecas primitivas, atrás dele uma grande cortina vermelha escondia um quarto pequeno. Antes mesmo de ver as meninas, seu instinto predatório lhe faz olhar a esquina, sua boca enche de água. - MENINAS, AQUI! - Acena com uma boneca na mão.

 - Olha Anuket, pequenas amigas. Eu nunca tive uma. - Os olhinhos de Anúbis brilhavam de desejo. Sem nada a oferecer, a menina sabia que não poderia apenas agarrar uma e correr, algum guarda em algum lugar a pegaria e dessa vez, não tinha casa para ser devolvida. Anuket não se interessou, o que foi muito decepcionante para o fazedor de bonecas, logo a mais bela das duas. Experiente, sabia bem que não poderia tentar contra a vontade da criança, nunca daria certo. Mas a outra está beliscando o anzol, seria preciso um puxão firme e certeiro.

 - Então , menina, posso ver que você não tem nada a oferecer em troca da pequena amiga. Eu sinto muito mesmo, mas não posso simplesmente dá-la a você. - a voz forçadamente doce e suave do homem cativou a jovem Anúbis, que ouvia com atenção, mas provocou um repúdio da esperta Anuket, um calafrio desceu pela sua espinha, seus pés queriam correr, mas suas pernas não responderam. - Você pode ir embora agora, vai, não tem nada pra você. FORA! - Gritou para Anuket, que deu um salto para trás e correu. Anúbis não tinha percebido ainda, estava hipnotizada pela boneca nas mãos do fazedor. - Então, menina, eu faço um acordo secreto com você. Eu te empresto minha melhor boneca, para você brincar aqui dentro da banca. Quando você não quiser mais, deixa ela aqui e vai embora. Mas cuidado, se você machucar ela, eu te jogo para os crocodilos. E não conta nada pra ninguém, o acordo é só entre nós. Combinado?

Antes mesmo da menina pensar alguma coisa, uma adaga de metal esverdeado passa em sua frente, com cabo enrolado em couro, muito enferrujada, o pó verde flutuava no ar e cheirava mau, exceto pela lâmina cobreada muito afiada. Era Bastet e Anuket, que durante sua fuga, trombou de frente na moça que a seguia, e percebeu então que essa era a oportunidade perfeita para iniciar um contato.
- O que foi menina, por que está assustada?
- Um homem mau possuiu minha amiga.
- Não se preocupe, vamos lá ver.

O homem, assustado não tem tempo de reagir, a ponta da adaga pressiona seu pescoço.
 - Então, fazedor de bonecas, o que você está tramando?
 - NADA, nada, eu juro por Rá.
 - Jurar em falso é pecado, punível com a morte. Eu poderia levar você para os guardas, mas sabe como é toda aquela burocracia, montanhas de papiros para assinar. É muito mais fácil agente acabar com isso aqui mesmo, o que me diz?

O homem nada disse, não era a primeira vez que o flagravam no seu esquema demoníaco, e não seria a última. Ele sabia muito bem quem realmente era aquela farsante, leão em pele de gato. Do seu bolso saiu uma pequena estátua de Nerfetit, a bela, em ouro e pedras preciosas. Ele a coloca no balcão, que discretamente é guardada pela Bastet, recolhendo a adaga. O Gesto de Bastet foi nobre, mas se o ditado for verdadeiro, "a intenção é mais importante que o gesto", significa que as meninas estão correndo perigo muito maior. "Eu não posso vender mercadoria danificada, sua idiota", Dizia dona Sekhmet, referindo-se a virgindade de suas mercadorias.

EU JÁ SABIA

De volta no Disco de Apolo, como ficou oficialmente conhecido o prato de sopa, Baco e Júpiter batiam papo até que entra na cabine o biólogo e pai de Perséfone, Sr. Saturno Von Cronos:
 - Comandante, preciso ter uma palavrinha em particular com o senhor. É sobre minha filha.

 - Claro. Sr. Baco von Dionísio, por favor desca no deck inferior e verifique se a carga está bem fixada, eu quero testar a manobrabilidade da nave antes de chegar em Marte. Eu achei a decolagem meio lenta.

 - Estamos prontos Capitão. OOOOOOOHHHH vive em um abacaxi no fundo do mar...
Baco sempre sabe como fazer uma saída triunfal. O biólogo de fala baixa e mansa é um homem muito honrado, e respeitado. Mas seu aspecto magro e fraco esconde um lobo feroz quando o assunto é proteger sua princesa Perséfone.

 - Comandante, eu estou muito preocupado com as intenções do Sr. Plutão von Hades, ele está sempre, sempre de olho na Perséfone, conversando sem parar. Em nosso costume, os filhos de Hércules devem proteger sua pureza contra as influências do mal, que estão por toda parte. Minha filha é pura e, obviamente, é uma moça muito educada e sempre ouve com atenção, ri um pouco, mas tenho certeza que isso a incomoda muito e eu quero que pare. Agora.

Moça educada? Incomodada? De quem ele está falando? Com certeza não é essa Perséfone, deve ser outra. Todos na nave sabiam do namorico secreto de Perséfone e Hades, não era nenhum mistério de detetive. "Pobre rapaz", pensou consigo mesmo o comandante. "Ainda bem que não é mulher dele."
 - Doutor Saturno von Cronos, eu entendo a sua preocupação, de verdade. O senhor é um excelente pai, embora nesse assunto eu não entenda muito. (deixa os olhos abaixarem um instante, mas logo se recompõe, devia mostrar sua força militar). Eu não estou alheio à situação, doutor, pode ficar tranquilo, afinal é meu dever zelar pelo bem da tripulação. Eu vou descer lá para termos uma conversa.

- Obrigado comandante por ter entendido, eu vou com o senhor.

 - Ah, não, não doutor, não precisa não. - Cada "não" soava como um tapa na cara. - Eu cuido disso, por favor, fique tranquilo. Espero que o senhor entenda meu trabalho, a amizade e o bem estar de todos é fundamental para o sucesso da missão, e espero que todos nós possamos nos entender.

 - Eu entendo Comandante, obrigado.

 A nave era redonda, tudo é redondo, nenhuma parede reta para se pendurar um quadro, nenhuma porta retangular. As escotilhas de emergência, no caso de perda de atmosfera, pareciam os obturadores de câmera fotográfica, e permaneciam fechados até que alguém tocasse a placa eletrônica ao lado. A pessoa teria 5 segundos para passar, e então era automaticamente fechada, como um cortador de charutos do inferno. Da cabine, passando pela escotilha de emergência, chega-se imediatamente a um corredor circular, o deck superior. O piso é de grade metálica, em um formato estriado especial que conduz o campo magnético para fora da nave e proporciona a atração da gravidade. A maior discussão entre os cientistas e o Comandante foi se deveriam fazer o piso transparente ou opaco.

 - Mas Comandante, o piso opaco melhorará a eficiência de seus escudos em 12%, e a gravidade será exatamente a mesma de Gaia, seria como se nunca tivessem saído do planeta.

 - Não me importa. Eu preciso ter a visão total da nave o tempo todo, não posso ter todo o deck inferior escondido de mim. Aumentem a potência do reator para os escudos, dá na mesma.

- Mas Comandante, a gravidade aumentada seria 20% a mais que no planeta, uma pessoa de 80Kg pesaria quase 100kg durante a viagem.

- FAÇA!

No centro de tudo, a rosquinha do diabo. O reator era um monstro, e ficava visível a todos de toda parte da nave. Cabos elétricos e conexões hidráulicas zuniam e rugiam fazendo barulhos intermitentes, vapores condensados eram expelidos de válvulas de segurança como o nariz de um dragão adormecido. A força de atração magnética tinha sido desviada pelo piso até os escudos da nave, mas mesmo assim, era possível sentir a besta chamando para um abraço. Não tinha um mecânico chefe, nenhum engenheiro responsável. Aquilo assustava o Comandante:

 - Quem será o engenheiro responsável pela manutenção? - Pergunta para o professor cientista.

 - Ninguém comandante. Uma vez montado e ligado, não há nada que alguém possa fazer. Coisas simples como substituir uma linha hidráulica ou uma conexão elétrica, o senhor mesmo pode fazer, as redundâncias irão proteger a nave. Mas se houver uma falha catastrófica, ou se o reator não tiver mais potência para manter a anti-matéria contida, a explosão acabaria com metade do sistema solar, não adianta correr. Cuide bem do Disco de Apolo, Comandante, todas as nossas vidas dependem do senhor. Lembre-se: Em caso de emergência, atire a nave no sol, e rezaremos para que ele não vire uma SuperNova.

O deck transparente foi difícil de se acostumar. Como um espelho de água, uma pessoa andaria em cima enquanto outra andaria em baixo, seus pés tocando a mesma placa do piso, um efeito ótico perturbador. Um buraco no chão com uma cadeira giratória servia de elevador entre os planos gravitacionais. O efeito de giro nos órgãos internos era horrível, enquanto seu coração e pulmões eram comprimidos para os  pés, seu estômago subia até o pescoço. O comandante sabia que o piso deveria ser transparente pois sua tripulação tinha alguns segredinhos, um direito à privacidade difícil de manter em uma sociedade liberal e democrática. No deck inferior, na estufa, conversavam Perséfone e Plutão, com uma certa intimidade.

 - Atenção no deck, Comandante presente ! - Uma piada militar, raramente compreendida pelos civis.

 - Como vai comandante? Eu tenho aqui o seu relatório sobre o crescimento das plantas, a gravidade aumentada não foi problema, as plantas se adaptaram muito bem. Eu por outro lado, estou horrível. Nunca mais subirei em uma balança enquanto viver. - Diz Perséfone fazendo uma piada feminina, raramente compreendida pelos homens.

 - Esse trabalho não é do seu pai? Ele é o biólogo, você é a médica. A não ser que tenha crescido uma couve flor nas orelhas do Sr. Plutão von Hades.

Plutão von Hades era filho de pais Troianos, idolatradores de Hera, um povo perseguido, odiado, mau compreendido, sofrido. Seu país não era oficialmente reconhecido pela União das Pátrias, e seus inimigos mortais, os Latinos, eram muito ricos e influentes na política, muito vingativos e principalmente, muito intolerantes com a diversidade cultural de Gaia. Os Renascidos de Hércules em particular, uma seita que idolatrava os dozes trabalhos de Hércules von Héracles, juraram nunca dormir enquanto os seguidores de Hera estiverem vivos, aquela que pôs duas serpentes no berço do semi-deus. A guerra, no entanto, não era abertamente declarada pela pressão da opinião pública, e por que apesar da guerra ser um investimento lucrativo, a guerra fria era mais lucrativa ainda. O Comandante foi muito corajoso em trazer a bordo Plutão, junto com Saturno e Perséfone. Esse barril de pólvora poderia fazer perder toda a missão. Sua arma secreta, amor.

 - HAHA, muito engraçado Comandante. Como geólogo, é meu trabalho analisar a qualidade do solo da estufa.

 - Corta essa Sr. Plutão, todos nós já sabemos, vamos direto ao assunto, por favor. O pai de Perséfone está desconfiado e me pediu para separar vocês dois. Eu vim aqui para pedir aos senhores que sejam discretos, ou melhor ainda, conversem com o Doutor, façam disso um assunto oficial.

 - Sr, Comandante, eu compreendo. Peço desculpas por envolver o senhor nisso. Como o senhor sabe, eu sou Troiano e o pai de Perséfone é Herculano, ele nunca, nunca, nem morto, permitiria nosso relacionamento. O único motivo pelo qual ele me tolera, é que eu mudei meu verdadeiro nome para Plutão. O senhor é bem intencionado, e por ter me dado essa oportunidade serei eternamente grato. Mas o senhor não compreende, em termos de religião, o filho de meu inimigo já nasce culpado por todos os crimes de seus ancestrais. A criança já nasce julgada, culpada, e condenada à morte. Eu não estou apenas roubando o coração da filha dele. Eu estou levando a filha dele junto comigo para o inferno, e isso ele não irá permitir jamais. - Perséfone, sempre tão madura e independente, dessa vez sente uma vontade incontrolável de chorar e agarra o braço de Hades como se fosse uma criança.

 - (suspiro), eu não entendo. Eu sou um militar, desde meus 8 anos de idade. O Sargento gritava, eu engolia o choro e obedecia. Todos os dias, depois de cumprida minhas tarefas, uma missão era passada a ser cumprida no horário. Geralmente era alguma coisa idiota feito lavar os banheiros, ou lavar os veículos, ou lavar o prédio, uma forma de provar nossa obediência. Um dia, eu já tinha 17 anos, me deram um rifle, me puseram em um avião e me mandaram a Faixa de Gizé. A única coisa que me disseram foi "Você fica desse lado de cá da cerca e atira em tudo que se mexe do lado de lá da cerca." Nos primeiro dois dias eu atirei. 29 mortos confirmados. Os rapazes marcavam com giz cada morte confirmada em seus capacetes, disputando entre si. Mas aquilo começou a me incomodar, porque eles não estavam atirando balas em nós. Nenhuma bala, nenhuma explosão, nada que fosse letal. Só pedras. PEDRAS. Um dia, eu declarei cessar-fogo, pulei a cerca e fui lá ver de perto. Um inimigo que eu matei estava deitado de costas, então eu virei ele. Era um rapaz, de 17 anos, magro, sujo, fedido, segurando uma pedra na mão. Mais tarde, depois de render e revistar os prisioneiros eu fui até a vila inimiga, e vi um velho gritando para uma criança, gesticulando naquela língua bizarra que parece ter apenas a vogal "A" e um monte de consoantes guturais, apontando para a cerca. O velho estava pegando todas as crianças da vila, dando uma pedra para cada uma, e mandando elas para a cerca, para que nós as matássemos. Eu dei um tiro no velho, na orelha direita, em frente à todas aquelas crianças. Elas me olharam aterrorizadas. Eu comecei a chorar, desarmei meu rifle, e caí de joelhos. Uma das crianças veio até mim, e me entregou a pedra dele, essa aqui que tenho no meu bolso.

 - Comandante, eu ...

 - Não, ISSO É ERRADO! Não me importa que a maioria do mundo se odeie, isso é problema deles. O que eu faço da minha vida, é problema meu. E o que vocês estão fazendo da vida de vocês não é um pecado, e vou defender o amor de vocês até a morte. - As palavras sinceras do comandante valeram um abraço apertado de Perséfone e duas lágrimas de Plutão, grato pela história de perdão. Plutão sabia quem era o velho da história, era um dos Filhos de Hera, velhos feiticeiros corruptos, que diziam conversar com Hera e transmitiam a vontade dela para o povo. Na verdade, os velhos manipulavam aquele povo ignorante para sua própria agenda política.

Na cabine do piloto, Dr. Saturno von Cronos, muito emocionado, segurava seu livro sagrado nas mãos. O choro era uma mistura de ódio e frustração. O comandante esqueceu de desligar as câmeras internas, e o áudio transmitido foi uma faca quente no coração tradicional e conservador do pobre viúvo. Sua única filha, seu tesouro, seu legado, sua descendente, acabou de jogar toda a história de um povo no lixo para perseguir um amor impossível. IMPOSSÍVEL. "Aquele povo não sabe o que é amor, eles só sabem fazer guerra e matar. COVARDES." pensou consigo mesmo, socando o console e apertando alguns botões sem querer. A Nave fez alguns sons estranhos, alguns alarmes dispararam, o que fez com que o Dr saísse correndo pela escotilha direto para seu laboratório, na tentativa de esconder sua descoberta por enquanto. "Preciso salvar a alma de minha filha. Tem que parecer um acidente." pensou.

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