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quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Fantasmas de Marte - Capítulo 2

O OUTRO PREFÁCIO

O céu estava lindo, como sempre. O pequeno Sol e a atmosfera transparente mostravam estrelas 24h por dia. Os tons vermelhos e amarelos em constante movimento sempre fascinaram a pequena Anuket, que gostava muito de deitar de costas na grama baixa, na encosta de um morro baixo, mas que era o suficiente para se esconder de seu pai. Talvez o morro devesse ser um pouco mais distante, porque ainda sim sua paz interior era interrompida pelos gritos histéricos de Seth.

 - ANUKET, VOLTA JÁ AQUI AGORA! Eu juro pra você Ísis, um dia desses essa menina vai me matar. Meu coração não aguenta isso todo dia! Só por Rá.

 - Eu estou mais preocupada com seu fígado do que seu coração querido, porque você não me dá esse copo de cerveja e senta um pouco, eu vou lhe fazer aquela codorna assada que você adora. Vem querido, por Rá. - Disse Ísis, a mãe carinhosa e esposa fiel, talvez fiel de mais. Ísis tinha um bom coração, mas nunca se punha entre a bebedeira de Seth e os tapas e hematomas de Anuket. Esse pecado lhe corroía a alma por dentro, lhe roubando toda a sua beleza que tinha de solteira, lhe deixando com a aparência de idosa frágil e doente. Isso e a desobediência da filha alimentavam o ódio e a cólera em Seth, que sabia bem como afogar suas mágoas, e assim por diante eternamente.

Era uma comunidade rural, afastada do único centro urbano do planeta, Heliópolis. Não era comum que as pessoas viajassem, e se fosse necessário, uma comunicação formal deveria ser enviada pelo mensageiro até a capital, e aguardar a resposta oficial junto com o trajeto e as permissões oficiais. A palavra liberdade tinha outro significado para aquele povo, muito diferente do que nós estamos acostumados. Hoje em dia nós abertamente repudiamos e ofendemos nossos líderes, contestamos as ordens de nossos pais e patrões, escrevemos blogs e twitters malcriados. Não para essa gente, que se auto-denomina filhos do Sol Rá. Liberdade para eles significava apenas que eles poderiam permanescer vivos, desde que não houvesse motivo para perder esse privilégio.

Parece cruel, mas na verdade, é impossível o peixe dourado ter saudades do oceano se ele for nascido e criado no aquário. Não, apesar de tudo, era um povo muito feliz, grato a Rá pela sua existência e pelas dádivas que lhe eram (raramente) concedidas. Todos exceto uma pequena menina sonhadora, inocente mas muito esperta, a pequena Anuket, que nunca tirava os olhos das estrelas, imaginando como seria a vida dos outros filhos dos outros irmãos de Rá. E o fato de que a atmosfera era meio transparente e rarefeita, não ajudava a tirar a cabeça da menina das estrelas diurnas, mais um dos fatos que deixava Seth com sede, muita sede.

O céu nunca foi um problema para esse povo. Nunca tiveram ilusões científicas, como por exemplo se achar o centro do Universo, ou achar que são os únicos filhos de Deus. Mas o conhecimento só gera frutos racionais se for diretamente explorado, o que não era o costume dessa cultura. Ninguém tinha permissão de estudar nada além do Livro dos Vivos, a única fonte de conhecimento oficial do governo do Faraó. É claro que Anuket havia lido o livro todo, que aliás era tão pequeno que poderia ser lido em um ano, nesse caso 687 dias. Apesar da inocência da menina, ela sentia no fundo de sua alma que 90% do livro eram apenas propaganda, mentiras inventadas pelo faraó para se afirmar "A encarnação do Sol na Terra", o único e verdadeiro deus em forma de homem.

Anuket era mais esperta que isso, e ela achava que podia provar para ela mesma um dia. Por isso era tão fascinada pelo céu. Á noite, sua estrela preferida aparecia, o olho de Ankh, azul vivo, rodeada por uma bola cinza, que lhe dava a ilusão óptica de ser um olho que tudo via no Universo. Para os filhos de Rá, a vida era uma prova de lealdade a Deus Sol. Quem fosse um bom súdito, seria então levado a uma existência no paraíso de Ankh, o olho que tudo vê, e seria então educado nos segredos de Rá para servi-lo no Universo. Aqueles rebeldes e julgados incapazes, seria queimados no fogo de Hórus, tão grande e vermelho que poderia ser visto quase 18h por dia no céu, um eterno lembrete de obediência ao único Deus.

Só haviam dois motivos para Anuket voltar para casa e arriscar mais um hematoma, seu fiel companheiro, o gato Ammut, ou seu irritante e ao mesmo tempo interessante marido prometido, o mensageiro Real Khnum. Irritante porque Khnum era fiel ao faraó em todos os sentidos, uma máquina obediente que não tinha vontade própria, se o Faraó dissesse "morra", seu coração não ousaria a blasfêmea de dar nem mais uma batida. Mas para a frustação da jovem curiosa, o mecanizado cabeça-oca Khnum era um mensageiro Real, e isso significava que ele poderia viajar para qualquer lugar do reino a qualquer hora sem um passe oficial, e ele era a única fonte de informação disponível aos camponeses. Nessa hora, a única na verdade, Seth e Anuket se sentavam juntos à mesa, para ouvirem interessados a tudo que Khnum tinha a dizer. Ísis o tratava mais do que a um filho, o fazia de o próprio filho de Rá, e isso era um dos motivos de suas constantes visitas, além é claro da beleza sobrenatural de Anuket.

- Trago boas notícias do faraó Rá - todos os faraós se chamavam Rá. Na verdade, quando o faraó morria, imediatamente um de seus filhos ocupava-lhe o lugar, dando a ilusão que o faraó era imortal. - Devido à farta colheita de cevada este verão - Seth não esperou o jovem terminar, já pulou da mesa e agarrou Ísis pelas mãos, girando de alegria. - a ração de cerveja para o próximo período será 10% menos diluída. O pão conterá 15% menos fibra - Anuket suspirou aliviada, essa fibra de papiro é muito indigesta. Na verdade é a mesma que faz suas roupas e os cobertores. - E mais uma coisa. O festival da colheita terá um dia a mais, e por isso, eu tenho ordens de distribuir mais passaportes para os trabalhadores da limpeza.

Não havia honra maior para um camponês do que servir na equipe de limpeza do festival. Durante vários dias, toda a corte do faraó e os nobres do reino dançavam nus bebendo cerveja, dançando e fazendo orgias até caírem no chão inconscientes. Os servos da limpeza deveriam então entrar no salão correndo, sem encostar em nenhum nobre porque isso é pecado, punível com a morte, e evitar que o desmaiado se afogue no próprio vômito. O nobre deveria acordar então em sua cama, de banho tomado, devidamente vestido e pronto para voltar à ação. Honra essa que a pequena Anuket já recusou uma vez, e seria muito difícil escapar dessa vez.

 - Anuket, minha querida, eu me arrisquei muito ao pedir um favor para meu chefe. Eu pedi que ele incluísse seu nome no passaporte, para que assim você pudesse ficar em segurança durante o festival, sem medo de ser "possuída". - Os camponeses usavam o termo "possuído" para o servo que fosse "achado" por um nobre. Ele seria então marcado como seu escravo pessoal e levado até Heliópolis, e nunca mais seria visto. Mas um passaporte marcado com o próprio nome do servo é o mais próximo de liberdade que um camponês poderia sonhar, ser dono de si mesmo.

 - VOCÊ O QUE, SEU IDIOTA! - Anuket explode de raiva e corre até a porta mas então algo a faz parar. Um pensamento começa a nascer em seu brilhante intelecto. Uma imaginação, imagens em movimento, como nunca tinha visto antes. Ela se imaginou com o passaporte seguro, desviando dos milhares de nobres bêbados tarados, que sem pensar duas vezes a possuiríam de imediato. Ela se viu saindo discretamente do salão principal, em direção ao interior do palácio, portanto o passaporte e dizendo aos guardas que precisava de roupas limpas para um nobre qualquer. Nesse momento as imagens desapareceram, sua imaginação não era capaz de entrar no palácio, não sem nunca ter estado lá. Ela precisava estar lá. Imediatamente, e para a surpresa de todos, sua voz doce e suave retornou.

 - Desculpa, desculpa querido. Eu entendi outra coisa. Achei que você tinha dito que eu seria possuída pelo seu chefe, mas daí percebi que isso não faz sentido. HAHAHA. - Anuket força sua mais estúpida risada infantil, e o susto de todos se transforma em alegria, todos pensando que a menina bobinha estivesse com a cabeça nas estrelas, de novo. Sua cabeça estava sempre nas estrelas, sonhando sim. Mas nem por um momento Anuket seria considerada boba ou maluca, não. Ninguém daquele povo simples e ignorante poderia imaginar o que o destino, traçado pelo próprio Rá, faria dessa pequena menina a última esperança de um povo e seu futuro.

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