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quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Fantasmas de Marte - Capítulo 6

NÃO VEJO PROBLEMA

Depois do incidente, Anuket e Anúbis seguiram Bastet até uma pensão conhecida da gangue e passaram a noite. Ali as meninas estariam seguras, mas sob forte vigilância até o dia do leilão, após o festival. Anuket exibia o passaporte como foi instruída por seu marido, que era uma espécie de medalha de bronze negro, com o selo real e o nome do dono do escravo. Nesse caso, o nome era Anuket, um hieroglifo de serpente simbolizava a posse, e novamente o nome Anuket. Como identificação, uma tatuagem com seu nome era feito em toda criança de 1 ano na batata da perna direita. A segurança que Anuket sentia era justificada, pois se um guarda verificasse que a tatuagem na perna não estava de acordo com a medalha, os crocodilos jantariam como reis. Anúbis não estava preocupada, afinal, ela se julgava órfã de sua mãe falecida e seu pai biológico, um homem simples e amável, embora seu amor fosse direcionado às esposas infiéis de seus vizinhos, nunca a seus filhos. Sua casa parecia um orfanato, brigas e disputas pelo poder eram comuns, e Anúbis não teria dificuldade em trocar um pelo outro. 

 - Esse é seu quarto, cama, lavatório, baú, mesa e cadeira. O toque de recolher é às 8:00, para uma menina como você. Pode sair quando quiser, mas nunca suba nos andares superiores, e nunca converse com estranhos, como aquele fazedor de bonecas. Tem muitos como ele por aqui. Eu não vou estar por perto o tempo todo, mas qualquer pessoa que use uma pena de pavão no brinco é minha amiga, pode confiar. Toma aqui, sabe usar isso? - Bastet põe a pesada bota de couro de crocodilo na cadeira, fazendo um barulho alto e assustando a menina. Levantando a sua túnica devagar, a surpresa da menina vira terror, ao ver as diversas cicatrizes na perna da bela moça. Um anel marcado em seu tornozelo denuncia que uma vez esteve acorrentada a grilhões de ferro muito apertados. Em sua pele macia, diversos cortes e marcas estranhas, em forma de gota, queimaduras antigas. Da coxa, Bastet desamarra uma bainha de couro cinza e uma pequena adaga, a lâmina era uma reserva em casos de emergência. A Lâmina sem ferrugem tinhas algumas manchas de humidade, prova de seu uso.

 - Não. Eu fui treinada em costura. - Por motivos óbvios, os camponeses tinham apenas 1 ano de estudo intelectual. O resto de suas vidas era dedicado à aprender uma profissão que servisse às necessidades dos nobres. Os mais comuns eram cozinha, costura e metalurgia. Os Pedreiros eram semi-nobres, considerada uma profissão divina, pela importância que as pedras tinham naquela cultura.

 - É muito fácil. O mais importante é que você nunca se esqueça disso: "Se você hesitar um segundo, você morre e o outro cara vive. A escolha é simples". Vou lhe ensinar os três movimentos básicos. Segure a adaga com a ponta para cima , cotovelo junto ao corpo, lâmina paralela ao piso. Faça a estocada e grite, mostre os dentes e olhe nos olhos. Antes de puxar a lâmina para fora da barriga da múmia, gire a lâmina, assim ele não terá chance. Agora, segure a lâmina para baixo, se a múmia tiver uma lâmina também, espere ele atacar primeiro, pule para trás, gire e esfregue a sua lâmina no braço dele, assim ele vai soltar a lâmina dele. O terceiro é a finalização, com a múmia ferido ou sentado, levante a lâmina e enterre na cabeça dele. Cuidado, não vire a lâmina porque ela quebra. Não se preocupe, os guardas não vão lhe prender, eles não ligam.

A pequena Anuket experimentava um sentimento novo, confuso. A menina estava paralisada, em êxtase, pela admiração que tinha por aquela forte e bela mulher. A cada movimento ensaiado, o perfume de Bastet se espalhava pelo quarto, suas jóias brilhavam na luz da pequena vela, seu cabelo voava pelo ar, se desarrumava e então voltava a pender atrás da cabeça, obediente. Tão independente, tão segura, tão sabida. Antes de ir embora, finalmente as palavras saltam em desespero:

 - Eu vou te ver de novo?

  - Pode apostar. - Bastet sentiu o calor e admiração da pobre inocente, e sentiu mais uma coisa, também novidade para a sofrida guerreira. Sentiu vontade de sorrir. Foi muito estranho, a sensação era a que seu rosto iria trincar e se partir em vários pedaços, como uma boneca de louça dos nobres. Mas não podia se deixar levar pelas emoções, aquilo era trabalho.

No quarto ao lado, Anúbis pulava na cama de palha de porta aberta, e aquilo irritou Bastet. - PARA COM ISSO! - A menina caiu sentada, olhando para o chão. Foi a primeira vez em sua vida que alguém lhe deu uma ordem. Surge então no corredor Anuket, que seguia o cheiro de sua benfeitora. Ao ver Anúbis sentada, teve uma idéia.

 - Anúbis, Bastet disse que podemos sair junto com uma mulher de brinco de pavão. Vamos até o bar assistir a dança.

 - Eu tenho sede, o ar aqui é parado e fumacento. Eu sinto falta do sol. Será que falta muito para o festival?

 - O que deu em você? Já quer voltar? Ainda tem muito pra aprender aqui. Agora nós podemos sair em segurança, não tem problema. - Anúbis não conseguiu dormir à noite, aquele homem mau e a adaga verde lhe deram pesadelos. Mas Anuket tinha razão, não era hora de desistir, o pior já passou.

Descendo as escadas, imediatamente a mulher de brinco de pavão segura Anúbis pelo braço.
 - Onde vocês vão?
 - Queremos ver a dança.
 - Vocês perceberam que as lanternas dos bares tem papiros coloridos? Vocês podem ir nos bares amarelos e azuis. Nunca nos vermelhos. Somente homens vão nos bares vermelhos, e eu não quero ter que salvar vocês do bar vermelho, entenderam bem?
 - Amarelos e azuis. Entendemos.

O andar térreo da pensão era um bar amarelo, então Anuket começa a tirar conclusões do que vê. Era um bar calmo, onde as pessoas conversavam enquanto comiam. A música vinha do outro lado da rua, o bar azul. Ao fim da rua, o bar vermelho com dois homens grandes na porta, um arqueiro e outro com a longa espada curva presa na cintura e um pequeno escudo redondo no antebraço esquerdo. Os brincos de pena de pavão estavam por toda parte, parece que aquela rua era segura para explorar. Anúbis, como sempre, não entendeu nada.

 - Que bar chato. Mas eu vou pedir água.  - A moça atrás das meninas estala os dedos e um pequeno menino magro, de olhar parado e sem vida, traz um copo de barro seco ao sol com água. A menina bobinha se espanta com a rapidez, e começa a rir. Anuket começa a juntar os pedaços do quebra-cabeça. A intenção daquele salvamento de Bastet não estava claro, ainda. Será que as meninas eram hóspedes da gangue do pavão, ou será que aquela seria a prisão mais confortável da cidade? Anúbis se diverte com a atenção: - Você viu Anuket? Eu pedi água e o menino me trouxe imediatamente. Isso é tão legal!

 - Você pode pedir comida e bebida à vontade, Dona Sekhmet vai cuidar bem de vocês até o festival. Por isso, tomem o cuidado de não sair dessa rua, voltem para o toque de recolher, e quando for o dia do festival, nós levaremos vocês lá e vamos te proteger dos nobres também. Já foi tudo arranjado, fiquem tranquilas. Esse passaporte é uma ofensa para alguns de nós, menina, esconda dentro da túnica, para seu bem.

 - Desculpa. - Anuket começa a montar a imagem na cabeça. É muita informação de uma vez só, ela precisaria de mais tempo para assar o pão, mas seus dedinhos inteligentes já lambiam a tigela. As marcas nas pernas de Bastet eram castigos sofridos por escravas desobedientes. Dona Sekhmet havia liberto Bastet, e era dona da rua toda, e sua gangue de pavões fazia a proteção. Mas muitas perguntas ainda não tinham resposta, por exemplo quem é Dona Sekhmet, e o que ela ganha com isso? Anuket podia ser apenas uma menina camponesa, mas se seu Pai lhe ensinou alguma coisa na vida, é que nada é de graça. Quando ela queria um favor do velho bêbado, a conversa deveria começar com uma oferta de paz, naquele caso, um copo gelado da cerveja do fundo do barril, a parte menos aguada, um pouco acima do lodo de lama do rio e fermento de levedura. - Por favor, eu queria conversar com Dona Sekhmet e agradecer a gentileza.

Como prova a risada histérica da jovem guarda, a oferta foi muito preciptada. E além disso, Anuket não tinha nenhum presente para a gorda rica, pelo menos, nada além de si mesma. Ela então pega Anúbis pelo braço e atravessa a rua até o bar azul. Ali sim era lugar para as jovens viverem um pouco. Muita música, muita bebida, o palco redondo no centro era visível a todos, que exibia danças e peças de teatro 20h por dia. Naquela sociedade de poucas morais, uma era respeitada desde tempos pré-históricos. Adultos bebiam cerveja, mas as crianças somente poderiam beber mosto. Mosto é um líquido muito doce, parte intermediária do processo de fabricação da cerveja, antes da fermentação. Era muito nutritivo, e as crianças adoravam. "Assim não seremos alvo da fúria de Rá", diziam os anciãos, que não havia nada mais desumano e revoltante aos olhos dos deuses do que ver uma criança embriagada.

ATHENAS, TEMOS UM PROBLEMA

 - Comandante ! Comandante ! ACORDA! (tapa) - Perséfone desesperada, dá um tapa na cara do comandante que salta da cama em suas roupas de baixo, procurando na cintura uma arma que deveria estar ali, se seu pijama fosse um uniforme militar.

 - Pelo amor de Zeus mulher, o que é isso?

 - Plutão. Plutão von Hades. Venha rápido, eu não sei o que fazer. - O choro e a fala apavorada foram prova suficiente que havia acontecido um desastre. De um salto, esquecendo-se de vestir as calças, Comandante Júpiter agarra seu revólver e corre escotilha a fora na direção apontada por Perséfone. A poucos metros de distância, seguindo o corredor circular estavam o Capitão e Sr. Baco, chutando e arranhando a escotilha do geólogo. Dr Hypnossono ficou na porta de seus aposentos, assustado sem saber o que fazer.

 - O que foi? Capitão, que alarme é esse?

 - Comandante, rápido. A 2 minutos atrás recebi um alerta de falha ambiental no quarto do Sr. Hades, perda de pressão e temperatura. Parece uma falha de software. Eu desliguei o computador e Sr. baco está tentando reiniciar o sistema.

 - Comandante, parece que um sensor defeituoso detectou um incêndio no quarto do Sr. Plutão, e acionou o sistema de purgação. Toda a atmosfera do quarto foi ventilada para o espaço. Não podemos entrar antes de equalizar a pressão. - Sr. Baco abriu o painel da porta e acessou o painel de manutenção do computador. O comandante não tinha mais tempo a perder, devia agir rápido e preciso, no estilo militar.

 - Todos prestem atenção. Eu quero todos dentro dos seus quartos. Perséfone, vai ver se seu pai está bem. Sr. Baco, de volta para a cabine, quando eu der o sinal, reverta o sinal de incêndio e pressurize a nave. Capitão, conto com o senhor para me pegar quando eu abrir a escotilha. AGORA!

- 3 minutos comandante. - avisa Perséfone entrando no quarto de seu pai, que aparenta estar roncando.

Assim que o barulho da escotilha da cabine denuncia seu fechamento hermético, o comandante dá um tiro no sensor de incêndio da nave, imediatamente acionando o sistema de purgamento atmosférico nos decks centrais, onde fica o reator. O Ar faz um barulho alto, um furacão circular tenta assoprar o corajoso militar, que nesse momento só se preocupa em proteger sua roupa de baixo, "maldita hora de ser pego sem calças", pensa ele. Quando a pressão atmosférica se aproxima do vácuo, seus tímpanos estouram em uma dor alucinante, que quase lhe faz desmaiar. Com muito esforço, o comandante segura um pequeno sopro de ar, e finalmente o painel muda de vermelho para verde, destrancando a escotilha. Rapidamente o militar identifica o gelado Dr. Plutão, inconsciente no chão, e sinaliza para a câmera da cabine para que Sr. Baco repressurize toda a nave. Imediatamente o ruído de ar enche o ambiente, mas não a tempo de evitar que o comandante perca os sentidos. Apesar de ter prendido o ar, ele acaba escapando pelos sinos que ligam o nariz aos olhos.

Momentos mais tarde o Comandante acorda com Perséfone de novo:
 - A não, esse sonho de novo não. Ainda estou dolorido dos tapas passados. O que aconteceu com a minha voz? Estou meio surdo?

- Vai passar em 1 semana, meu herói. - ganha um beijo na testa. - Não foi sonho, o senhor arriscou a sua vida para salvar o meu amigo, e conseguiu. Ele vai viver. A exposição prolongada ao frio causou queimaduras, mas ao mesmo tempo preservou seu corpo contra os danos do vácuo. Eu deixei ele em coma induzido até baixar a pressão no cérebro. Não teve tempo suficiente para formar cristais de gelo, graças a Hércules, então suas células puderam descongelar corretamente. O Capitão e o Sr. Baco von Dionísio estão analisando o problema, enquanto isso, todos nós deveremos dormir na estufa, alternando turnos.

 - Muito bem. Bem. Alô? testando. testando. 1, 2, 3, som. som.  - Enquanto ele esteve inconsciente, a mente do comandante juntava os pedaços. Uma falha catastrófica, um alarme ensurdecedor, Perséfone distribuindo tapas, e um só homem não estava lá. Dormindo? Impossível.  - Perséfone, eu sinto muito, traga aqui o Capitão e seu Pai. Teremos uma conversa séria.

 - Si - sim senhor. Eu entendo. - Perséfone não era telepata, mas já sabia. Finalmente aconteceu. "Pelos deuses, pai, o que você fez? Pra quê", pensa ela, segurando as lágrimas. O Doutor também sabia, que cedo ou tarde, seria descoberto. O plano B era ainda mais óbvio que a tentativa de homicídio, embora só agora o Capitão tenha percebido. "Ainda não é a hora certa, se for para o olho se beneficiar dessa missão, preciso acabar com isso." pensou o militar, sacando Dona Rita, sua avó querida, e carregando-a com munição anti-pessoal de ponta oca.

 Ambos chegam ao mesmo tempo ao laboratório do Doutor, Perséfone ao ver a arma não consegue mais conter o choro. Capitão, que não era sem coração, pede silêncio a moça, para que não estrague a tocaia. Ele mostra o botão de choque da arma, que é capaz de paralisar todos os músculos de uma pessoa, sem matá-lo. A seguir, ele abre o painel de manutenção e pede acesso às câmeras internas, para planejar seu próximo movimento. Para sua surpresa, estavam offline, o doutor deve ter arrancado. Ele teria de entrar rápido e tomar uma atitude em uma fração de segundo. Mas antes que pudesse abrir a porta, Perséfone tem uma idéia. Ela pede ao capitão uma bateria de choque, que de improviso pode ser usada sem a arma, mas teria o efeito de imobilizar ambos, quem segura a bateria também. Esse risco era aceitável para qualquer filha de um maluco, mas não para o chefe de segurança.

O Capitão então acompanha a idéia, mas acha perigoso. Se a médica tiver um troço, quem vai cuidar da tripulação? Então ele pega uma bandeja de comida do refeitório. A Moça entende.
- Papai, sou eu, Perséfone. O Capitão foi dormir, o Comandante está desmaiado, então eu te trouxe seu jantar. Deixa eu entrar?

O blefe funciona, a escotilha se abre e o assustado doutor deixa sobre a mesa a adaga ritualística, em forma de serpente, com a qual pretendia acabar com seu sofrimento e diz:
 - Sangue de Hércules te cubra filha.

 Antes de qualquer reação, para o espanto de todos, o enorme braço do Capitão surge por detrás da moça e Dona Rita entrega seu beijo de boa noite. -Aos doze trabalhos, doutor. (zap).

 - Hoje e sempre, papai. - A moça abalada, suspira aliviada. Seu pai maluco ainda está vivo, apesar do canhão do monstruoso Capitão. Ele tenta esconder seu desapontamento, Dona Rita ainda guardaria seus segredinhos por mais algum tempo. Ambos levam o Doutor inconsciente até sua maca na enfermaria, e o Capitão ativa as amarras de emergência. O Comandante já está sentado, ainda com o turbante de faixas na cabeça, com um tufo de cabelo arrepiado saindo por cima. "Pareço um troll", pensa ao se olhar no espelho cirúrgico.

 - Acorda ele. - Perséfone injeta um líquido nas veias do seu pai, que acorda assustado. - Doutor, eu estou extremamente decepcionado com o senhor. Eu quero dizer, todos nós sacrificamos muito para que essa missão seja bem sucedida.

 - Sacrifício? Hahaha (risada maligna), o que você entende de sacrifício? Vocês não entendem, seus medíocres, bárbaros inferiores. Um filho de Hera contaminou minha filha, a filha de Hércules. É o fim, está tudo acabado. Isso tem que acabar aqui.

 - Exatamente. - para o espanto de todos, que olham atônitos para o Comandante. - É o fim. Acabou. Parabéns, doutor, agora estamos na mesma página. Seja bem vindo.

 - Mas, mas, o que? - Balbucia o confuso doutor.

 - Você não entendeu? O senhor mesmo me disse, lembra-se? Lá na Cabine. O Senhor me disse, os filhos de Hércules devem proteger sua pureza contra as forças do mal, que estão por toda parte. Eu achava que você estava se referindo ao senhor Plutão von Hades, mas agora eu sei. Nós, todos nós, éramos o mal, impuros, contaminados, perdidos não é mesmo. Bom, olhe-se no espelho doutor, e você verá o mal, um homem pequeno e perigoso, culpado de tentativa de homicídio e sabotagem de equipamento militar.

 - Não. NÃO. NÃO PODE SER! Filha, minha adaga, minha adaga!.

 - Não papai, você ainda não entendeu, ouça mais um pouco, estamos aqui para te ajudar, confie em mim. Eu sempre serei sua princesa.

 - Não Doutor - Completa o Comandante pegando na mão do confuso e assustado idoso -, você não vai fugir, não tem lugar nenhum nessa nave que você possa fugir. Encare feito homem, a verdade é uma só. Você morreu, como filho perfeito de Hércules. Eu te trouxe de volta a sua nova vida. Seja bem vindo à raça dos Bárbaros medíocres. Eu posso confiar em você?

O Doutor se contorce de dor, apesar de estar tudo bem com ele. É uma dor mental, que nenhum remédio físico é capaz de curar. A culpa, o ódio, a frustração, tudo ao mesmo tempo como um milhão de vozes ecoando em sua consciência. Finalmente um pensamento coerente:" Como pude errar tanto? Eu estava seguindo ao pé-da-letra as minhas escrituras sagradas. Minhas? MENTIRAS."

 - Comandante, agora eu entendo. Eu tentei tanto ser fiel às escrituras, e acabei interpretando tudo errado. Preciso de ajuda, de aconselhamento espiritual.

 - Não olhem pra mim. - Diz Baco, apesar de ninguém ter olhado.

 - Doutor, Eu conheço a pessoa ideal para esse serviço. Ele ainda não saiu muito de seu quarto, mas eu confio a minha alma nas mãos dele. Doutor Hipnossono von Emmanuel foi o médico que me curou do meu estresse pós traumático quando voltei da guerra. Ele vai te ajudar, ele entende de todas as religiões, e vai te abrir muitos caminhos. Sorte minha ele ser arqueólogo e antropólogo, senão eu não teria uma desculpa para trazê-lo também.

Pai e filha saem abraçados até a porta de Hypnossono. Ao tocar a campainha, a porta imediatamente se abre. A sala está um pouco escura, a meia luz. O cheiro de incenso e tabaco cria a atmosfera. Em um canto da sala, um pequeno altar e a estátua de um homem alto e magro, com uma túnica azul e branca, decorada de ouro, com seus pés cobertos com rosas. Seu rosto branco como a neve sorri, seus longos cabelos e barba bem aparada ardem em um vermelho vivo. As velas vacilam e tremulam, como se estivessem conversando entre si. O doutor está concentrado, e faz o gesto para se sentarem. O medo de pai e filha perturba a paz do ambiente.

 - Não tenham medo, eu estou aqui para ajudar. Eu posso provar, com uma pergunta. Eu teria todo esse trabalho se minha intenção fosse atrapalhar? Seria mais fácil sabotar a frágil nave de vocês, não? Mas não se preocupem, como eu disse, nós estamos aqui para ajudar, e você doutor, sabe melhor que ninguém que não se pode viver no vácuo do espaço.

 - Eu sei, estou muito envergonhado.

 - Que bom, que bom. Seu sentimento de arrependimento é o começo de sua cura espiritual. Saiba, doutor, que sua antiga religião não é de toda errada. Mas ela serviu ao seu propósito a muitos e muitos anos atrás, em uma época de barbaridades e poucos arrependimentos. Ser fiel às suas crenças não pode ser mais importante que ser fiel ao trabalho do Criador, não concorda comigo?

 - Quem é aquele homem na estátua?

 - Quem você acha que é? Adão? Hércules? Moisés? Hera? Hórus? A resposta é difícil de entender, então por enquanto aceite apenas que esse homem vive, sofre e morre para salvar a humanidade de seu caminho auto-destrutivo, onde quer que ela vá. Como o senhor bem sabe, o mesmo homem que é capaz de amar e construir, também é capaz de odiar e destruir. Deus, o Criador, o Senhor dos seus deuses menores, deu a vida e o livre arbítrio a todas as suas criaturas. Mas Deus não deu o conhecimento todo de uma vez. É da responsabilidade de todas as criaturas do Universo, viverem, aprenderem e descobrirem qual é o sentido da vida, o que significa amar, porque é tão importante respeitar e proteger a vida, mas também porque não é preciso temer a morte. Eu vou lhe contar uma história. Por favor ouça com atenção.

Nesse momento, o Capitão que tinha sido encarregado de ficar com um olho no gato e outro na sardinha, montava guarda fora dos aposentos do doutor religioso. "Esses malucos vão acabar me ferrando, não foi fácil apagar a tatuagem das costas da minha mão. Essa missão tem que dar certo, quando chegar a hora." pensou ele desconfiado, e então veio a idéia de dar uma espiadinha através do console de manutenção. O capitão acessa as imagens e pede o áudio pelo Closed Caption, para manter tudo discreto.

Continua doutor Hypnossono, embora sua voz de tempos em tempos se modifica em tonalidade e sotaque. Sua presença é estranha, como se não tivesse ninguém ali, e de repente parece que a sala está cheia de outras pessoas. - No início era o Verbo. Na sua Bíblia, como em muitas outras, está escrito que Deus fez o mundo em seis dias e descansou o sétimo. Um dia para vocês é uma revolução da Terra em volta de si mesma - O mais comum era chamar o planeta de Gaia. A denominação Terra era muito antiga, pouco usada.- Mas Deus não mora na Terra. Um dia para Deus contém infinitos dias humanos. Vocês meus pequeninos - sua voz muda para uma forma mais feminina - tão atarefados, sempre com pressa. Sua vida é tão curta, sim, mas nem por isso precisa de todo esse desespero. Veja, o corpo humano como vocês conhecem, sofreu muitas evoluções ao longo das eras, e também as almas de vocês. Comparado com antigamente, na época de Hércules que você tanto admira, os corpos eram mais grosseiros e rudes porque as almas daquelas pessoas eram grosseiras e pouco evoluídas. Está me acompanhando? - A voz volta ao normal.

 - O que isso tem a ver conosco? Pergunta Doutor Saturno, querendo mostrar que compreendeu mais do queria em uma vida.

 - Você, Saturno, cometeu um crime contra a vida, porque você acreditava estar seguindo a sua religião. Mas o senhor não conhece a origem da sua crença, e por isso está perdoado. Mas por favor, é importante que eu continue, para o seu bem. - O tom de ameaça foi imediatamente absorvido pelo teimoso idoso. Sua filha estava maravilhada com a situação, e apertou a mão do pai. Ela sabia que quando o velho sentia medo, seu brilhante cérebro científico tomava o controle, mas essa não era a melhor hora.

 - As suas origens são as mesmas que todos os outros humanos em seu planeta. O corpo que vive em Gaia é humano, mas as almas são pura energia, vida imaterial, sem forma. Os titãs que seu Hércules derrotou realmente existiram, e foram derrotados, mas não as suas almas. Os seres que você tanto teme, doutor, estão vivos entre vocês, e eles tem a forma humana. Demônios, que são almas inferiores, perdidos em seus pecados de orgulho e vingança, caminham entre vós. Eles se parecem com vocês, falam como vocês, alguns lideram vocês. Seus corações negros só conhecem o ódio e o orgulho, e a intenção deles é o de fazer um exército de almas penadas, almas sem vontade própria, para destruir a criação do Senhor, nosso Deus. Mas não se preocupe, todos a bordo dessa nave são bons de coração, e minha missão aqui hoje é despertar o verdadeiro amor nos seus corações.

 - Por favor, continue. - Agora, mais calmo, o doutor começa a aceitar a mensagem como sendo uma verdade importante, talvez a maior descoberta de sua carreira científica.

 - Você meu caro doutor, se julgava superior ao seu colega baseado apenas no seu nascimento. Isso está longe de ser verdade. As verdadeiras almas superioras não habitam o seu mundo. Vocês ainda não estão prontos. Para ser considerada alma evoluída, você deve entender o verdadeiro significado do amor. O mesmo amor que você sente por sua filha, você deverá sentir pelo seu colega, por todas as criaturas de Deus, amigos e inimigos por igual. O Amor não permite distinções, julgamentos, preconceitos. Quando o senhor for ler as suas escrituras sagradas, pense no amor. Existe muita boa vontade e muito esforço foi colocado nessas escrituras, mas lá atrás na época em que foi feita, ninguém sabia o que era amor. Eram mais como animais, e o amor era só mais um instinto, sem muito pensamento consciente. Eu quero que o senhor encontre uma maneira de amar seu colega, da mesma forma como o senhor ama sua filha e a si mesmo. Você compreende a importância disso?

 - Devo ser sincero, não.

 - Acho que o senhor compreende melhor do que está me dizendo. Agora que o comandante te libertou do dogma e do ritual, use sua nova liberdade para estudar novos meios de evoluir sua compreensão das coisas. Estude outras escrituras sagradas. Tente entender porque Hera pôs a serpente no berço de Hércules. Hércules viveu muito tempo depois disso, e tudo isso se passou nos planos do Senhor. Existem diferentes verdades para diferentes povos, e só existe uma mentira. Uma única mentira. Todos no seu planeta acreditam que seus pecados serão perdoados quando morrerem. A verdade que eu revelo a você, doutor, é que a forma como você vive sua vida, dia após dia, é o que será medido e julgado, não somente a forma como morre. E se sua vida se resume a obediência cega de escrituras que o senhor claramente não compreende, então será punido por isso. Não no inferno, e nem no céu. Mas de volta na Terra, sempre de volta na Terra. Lembre-se, da Terra veio e para a Terra retornarás.  - A presença vai embora. O doutor Hypnossono está visivelmente cansado e pede um copo de água, oferecido por Perséfone.

 - Doutor, eu ainda tenho muitas dúvidas...

 - Eu sei, meu amigo. Mas essas coisas levam tempo. O mais importante é que você esteja comprometido com a verdade. Deus é todo poderoso, e soberanamente bom e justo. Dizer que Deus prefere uma de suas criações sobre a outra é dizer que Deus é burro e errou, isso não faz sentido. Dizer que Deus destruirá o mundo, e ressucitará os mortos, é dizer que Deus criou o Universo totalmente ao acaso, jogou com os dados da sorte, e isso é absurdamente errado. Acaso não existe. Toda consequência tem uma causa. Procure pela causa de tudo e encontrará a Deus.

 - Vamos Papai, deixaremos o doutor descansar. Muito Obrigado, eu estou toda arrepiada.

 - Essa foi a primeira verdade que você disse na presença de seu pai, Perséfone. Adquira esse hábito saudável, ele precisa de você, não do que você mostra a ele.

O Capitão esconde o painel, mas não consegue disfarçar sua cara de espanto. O comandante vem buscar o doutor para escoltá-lo de volta a seu laboratório, agora livre de adagas. Sr. Baco interrompe:

 - Desculpa comandante, temos um problema. A nave foi projetada para ventilar um compartimento em chamas e conservar o oxigênio. Mas o senhor ventilou todo o deck, e acabou com nossas reservas de oxigênio. Segundo o computador, não temos oxigênio para voltar. Devemos encontrar uma fonte de 200 metros cúbicos de oxigênio no planeta para voltar.

 - 200? Em Marte? Meu Deus. Avise Athenas que temos um problema, talvez eles mandem um tanque de emergência, podemos esperar alguns meses reciclando o ar da estufa. Em último caso, três pessoas mais a Doutora Perséfone podem retornar em estado de coma induzido. Se chegar o momento, tiramos a sorte para ver quem fica.

- Nesse caso, serei eu e mais um. - completa Baco. O Capitão sabe que isso não é problema, sua missão resolveria a falta de oxigênio eliminando os narizes infiéis. Mas as palavras de Hypnossono mexeram com suas crenças, alguma coisa começa a despertar no seguidor do olho.

sábado, 22 de novembro de 2014

Fantasmas de Marte - Capítulo 5

EU NÃO SABIA

Finalmente, Heliópolis. "Meu Rá, o que é isso?" todos diziam, quando olhavam pela primeira vez a cidade, sua pirâmide tão alta que as nuvens escondiam parte do cume, que ficava parecendo um trapézio. A cor predominante era o amarelo claro, das rochas de calcário, mas finamente decorada com linhas brancas, metálicas, e pedras azuladas, vitrificadas, que davam um brilho quase sobrenatural a toda a estrutura. Pequenas jóias de todas as cores, rubis, esmeraldas, topázios, diamantes, desenhavam constelações de estrelas, imagens de hieróglifos representando as glórias e as vontades dos Deuses. As poucas palavras escritas do lado de fora eram orações dos deuses, e ordens de obediência e disciplina para Rá.

Anúbis, depois de muito esforço, tinha conquistado a confiança de Anuket. As duas amigas agora compartilhavam seus pensamentos e desejos, de forma inocente.

 - Anuket. Você sabia que seria assim?

 - Não. É por isso que eu vim. Quero ver tudo, saber tudo. Será que nós poderemos andar pelo palácio, ler os papiros?

Um dos semi-nobres conduzindo a charrete ouve o comentário inocente e decide, de forma maliciosa, alimentar as esperanças da pobre inocente. O outro ri baixo para si mesmo
- Menina, mas é claro. Todo camponês é muito bem vindo nos andares superiores. Eu conheço o guarda da biblioteca, o nome dele é Homus. Diga que você veio comparar anotações entre o livro dos vivos e o livro dos mortos.

Anuket poderia ser inocente, mas algo dentro de seu coração dizia a ela que esse homem sorridente na verdade usava a máscara da mentira e traição. A esperta menina, em um trabalho brilhante de detetive, rapidamente organizou as evidências em sua imaginação. Primeiro, Homus não poderia ser um nome de gente, já que era o nome de um molho usado na comida dos nobres. Ela sabia disso através do seu marido tagarela. Segundo, ela sabia que os nobres guardavam o conhecimento para si, e que tinha muitas coisas que o camponês não poderia saber jamais. Mas aquele guarda bastardo e arrogante deu a ela uma informação muito valiosa. Ninguém nunca disse a ela, mas ela sempre soube, do fundo de seu coração, que se era entregue aos camponeses o livro dos vivos, então deveria existir o verdadeiro conhecimento de Rá, O Livro dos Mortos, o livro proibido aos camponeses. O livro do poder.

 Anuket sabia que conhecer é poder, e conhecimento demais era poder demais. O maior temor de todo faraó é a encarnação de Osíris, o deus dos mortos. Dizia a lenda de um dos capítulos do Livro dos Mortos que Osíris em pessoa, viria até a Terra para julgar e levar a todos para o Reino de Rá, acabando com toda a existência física, e jogando nas chamas do reino inferior todos que forem julgados inferiores. A palavra inferior perdeu seu verdadeiro sentido ao longo dos anos, decreto após decreto dos onipotentes faraós. Hoje, não resta dúvida. Nobres são superiores e portanto estão automaticamente salvos da fúria de Osíris. "Pobres camponeses, inferiores, que após essa existência miserável serão jogados aos montes no fogo de Hórus", "Nesse dia deveremos ter cuidado, o fogo de Hórus estará mais quente que nunca.", zombavam dois nobres conversando casualmente na Kahfeteris, o salão de refeições do palácio.

 - Chegamos Anuket, chegamos. Olha como tudo aqui é grande! Ai, que lindo essas estátuas de homens com corpo de gato. Olha!

 A cada comentário inocente e empolgado de Anúbis, os guardas riam cada vez mais alto e mais histéricos, todo ano era a mesma coisa. A ignorância dos camponeses era melhor que qualquer show de stand-up comedy que você puder imaginar. Homens com corpos de gatos, não sabia ela que aqueles eram Esfinges, múmias sagradas dos guardas pessoais de Amon, o pai de Rá. Amon era uma divindade superiora a Rá, e por isso era proibido aos camponeses saberem de sua existência. Diz o Livro dos Mortos que Amon criou o Universo e os vários mundos para Rá governar. Um dia Rá viu um de seus mundos sendo corrompido por outra divindade, Aton, o Deus da Caridade. Amon então criou um exército de bestas e demônios, feitos de pedra, para que Rá mantivesse seu poder. Após a batalha da Gênese, o vitorioso Rá libertou as almas de seu exército e mumificou seus corpos ao redor da cidade, em eterna vigilância. Um lembrete de Rá para seus súditos, que um dia Aton poderia voltar, e a caridade destruiria seu estilo de vida para sempre.

Os nobres normalmente caminham pelas ruas tranquilos, mas não hoje. Após o famoso incidente em que um servo surtou e esganou um nobre que assistia a procissão, o faraó ordenou que nesse dia os nobres não deveriam ser vistos pelos camponeses. Para os servos, ficava a impressão que aquela cidade maravilhosa de pedra e beleza era deserta, habitada por poucos privilegiados. Na verdade, existiam mais nobres que camponeses, o que era uma constante dor de cabeça para o pessoal do setor administrativo. Certa vez o ministro da comida disse ao faraó :
 - Ó deus Rá, ouça a minha preçe, esse ano a colheita foi 18% menor que ano passado, se não reduzirmos a nossa cota da nobreza, os camponeses morrerão de fome! .
O faraó fez aquela cara que cachorro faz quando não entende algo, e riu:
 - E daí?
 O ministro muito envergonhado retrucou:
 - Mas Senhor! Se perdermos camponeses agora, ano que vem a colheita será menor ainda. E no ano seguinte menor ainda. E assim por diante. Eu lhe pergunto, divino mestre, quem irá nos alimentar então?
O Faraó parou de rir imediatamente. Aquele pensamento era lógico, racional e certo. Mas o fato que esse pensamento tenha partido de um nobre inferior foi uma grande ofensa ao todo sábio e poderoso deus encarnado Rá. Só havia uma coisa a se fazer para restaurar a dignidade divina.
- Guardas, façam o que ele disse, e depois o atirem ao covil dos leões.

 - Chegamos finalmente. Precisarei de três, não quatro, banhos nas termas reais para tirar esse fedor carnicento de camponês da minha nobreza.

 - Não se esqueça de queimar as roupas. A contaminação é inlavável. - disseram os guardas.

O alojamento dos servos inferiores era uma espécie de favela. O salão inferior da pirâmide tinha paredes inclinadas a 12°, o que forçava a todas as casinhas de madeira reciclada e couro cru terem a mesma inclinação de 12°. A altura do salão era impressionante, mas não deixava de ser um espaço fechado que deveria ser aproveitado da melhor forma possível. Nos andares inferiores, lojinhas de permuta trocavam mercadorias entre os servos, e bares serviam rodadas de cerveja e destilados clandestinos, feitos ali mesmo com os restos da ração da nobreza, alegrados de muita música e dança característicos da cultura. Tudo aquilo era escuro, barulhento, fedido, e poderia ser muito perigoso.

 - Anúbis, isso tudo é tão lindo. É maravilhoso. Meu sonho está se realizando.

 - É mesmo Anuket, eu nunca mais vou voltar pra casa. Vamos amiga, vamos explorar!

 Agarrando a amiga pelo braço, as duas saem correndo em direção à rua principal, seguidas de muitos olhares maliciosos. "Carne nova no pedaço." pensou uma senhora bem vestida e obesa, duas características muito incomuns entre os servos. Primeiro que acumular riquezas era quase impossível, sem um sistema de economia e dinheiro. Segundo que a ração camponesa, enriquecida com fibras (indigestas) e minerais (da água lamacenta do rio), não permitia ao servo acumular gordura, todos eram muito magros e baixos. Aquela serva bem vestida e gorda deveria ter uma presença na nobreza que lhe permitia acesso ao luxo. Acesso esse que tinha um preço, pagável em mercadoria. Suave, bela e inocente mercadoria.

 - Bastet, eu quero aquela ali. A bonitinha que está sendo arrastada pela outra coisa horrível. - Anúbis não era horrível, dizer isso é maldade. Mas ela era um pouco diferente mesmo. Sua testa era alta, seu cabelo começava a crescer muito para trás, e isso deixava sua cabeça grande. Sua boca era um pouco pronunciada para frente, seus lábios não fechavam, mostrando alguns dentes tortos. Embora a cor da pele não fosse um problema naquela cultura, a pele de Anúbis era seca e peluda, realmente, aquela menina era a mina de ouro dos salões de beleza, se houvesse algum naquele lugar.

De pronto, Bastet, a líder da gangue de Dona Sekhmet, mais conhecida como fornecedora de sonhos, partiu em uma perseguição discreta, se misturando à multidão, vigiando cada passo e ouvindo cada palavra das duas meninas inocentes. As palavras doces e inocentes não causavam nenhuma impressão no coração de pedra da moça, nascida no campo, possuída por um nobre velho e gordo, resgatada pela Dona Sekhmet quando o nobre morreu engasgado em um pedaço de peru e seus bens foram leiloados no mercado. Sim, era uma hipocrisia que depois de tanto sofrimento, a liberta Bastet escravizasse inocentes para tomarem seu lugar. Mas um único pensamento ecoava em sua mente, "eu devo tudo à Dona Sekhmet, tudo. Até a morte".

As meninas passeavam pelas ruas filmando tudo, cada mínimo detalhe, com todos os seus sentidos mandando uma cascata de informações e sentimentos novos para seus pequenos cérebros. Virando em uma ruela menos movimentada, um fazedor de bonecas solitário em sua banca escura, sentado atrás de um balcão com algumas bonecas primitivas, atrás dele uma grande cortina vermelha escondia um quarto pequeno. Antes mesmo de ver as meninas, seu instinto predatório lhe faz olhar a esquina, sua boca enche de água. - MENINAS, AQUI! - Acena com uma boneca na mão.

 - Olha Anuket, pequenas amigas. Eu nunca tive uma. - Os olhinhos de Anúbis brilhavam de desejo. Sem nada a oferecer, a menina sabia que não poderia apenas agarrar uma e correr, algum guarda em algum lugar a pegaria e dessa vez, não tinha casa para ser devolvida. Anuket não se interessou, o que foi muito decepcionante para o fazedor de bonecas, logo a mais bela das duas. Experiente, sabia bem que não poderia tentar contra a vontade da criança, nunca daria certo. Mas a outra está beliscando o anzol, seria preciso um puxão firme e certeiro.

 - Então , menina, posso ver que você não tem nada a oferecer em troca da pequena amiga. Eu sinto muito mesmo, mas não posso simplesmente dá-la a você. - a voz forçadamente doce e suave do homem cativou a jovem Anúbis, que ouvia com atenção, mas provocou um repúdio da esperta Anuket, um calafrio desceu pela sua espinha, seus pés queriam correr, mas suas pernas não responderam. - Você pode ir embora agora, vai, não tem nada pra você. FORA! - Gritou para Anuket, que deu um salto para trás e correu. Anúbis não tinha percebido ainda, estava hipnotizada pela boneca nas mãos do fazedor. - Então, menina, eu faço um acordo secreto com você. Eu te empresto minha melhor boneca, para você brincar aqui dentro da banca. Quando você não quiser mais, deixa ela aqui e vai embora. Mas cuidado, se você machucar ela, eu te jogo para os crocodilos. E não conta nada pra ninguém, o acordo é só entre nós. Combinado?

Antes mesmo da menina pensar alguma coisa, uma adaga de metal esverdeado passa em sua frente, com cabo enrolado em couro, muito enferrujada, o pó verde flutuava no ar e cheirava mau, exceto pela lâmina cobreada muito afiada. Era Bastet e Anuket, que durante sua fuga, trombou de frente na moça que a seguia, e percebeu então que essa era a oportunidade perfeita para iniciar um contato.
- O que foi menina, por que está assustada?
- Um homem mau possuiu minha amiga.
- Não se preocupe, vamos lá ver.

O homem, assustado não tem tempo de reagir, a ponta da adaga pressiona seu pescoço.
 - Então, fazedor de bonecas, o que você está tramando?
 - NADA, nada, eu juro por Rá.
 - Jurar em falso é pecado, punível com a morte. Eu poderia levar você para os guardas, mas sabe como é toda aquela burocracia, montanhas de papiros para assinar. É muito mais fácil agente acabar com isso aqui mesmo, o que me diz?

O homem nada disse, não era a primeira vez que o flagravam no seu esquema demoníaco, e não seria a última. Ele sabia muito bem quem realmente era aquela farsante, leão em pele de gato. Do seu bolso saiu uma pequena estátua de Nerfetit, a bela, em ouro e pedras preciosas. Ele a coloca no balcão, que discretamente é guardada pela Bastet, recolhendo a adaga. O Gesto de Bastet foi nobre, mas se o ditado for verdadeiro, "a intenção é mais importante que o gesto", significa que as meninas estão correndo perigo muito maior. "Eu não posso vender mercadoria danificada, sua idiota", Dizia dona Sekhmet, referindo-se a virgindade de suas mercadorias.

EU JÁ SABIA

De volta no Disco de Apolo, como ficou oficialmente conhecido o prato de sopa, Baco e Júpiter batiam papo até que entra na cabine o biólogo e pai de Perséfone, Sr. Saturno Von Cronos:
 - Comandante, preciso ter uma palavrinha em particular com o senhor. É sobre minha filha.

 - Claro. Sr. Baco von Dionísio, por favor desca no deck inferior e verifique se a carga está bem fixada, eu quero testar a manobrabilidade da nave antes de chegar em Marte. Eu achei a decolagem meio lenta.

 - Estamos prontos Capitão. OOOOOOOHHHH vive em um abacaxi no fundo do mar...
Baco sempre sabe como fazer uma saída triunfal. O biólogo de fala baixa e mansa é um homem muito honrado, e respeitado. Mas seu aspecto magro e fraco esconde um lobo feroz quando o assunto é proteger sua princesa Perséfone.

 - Comandante, eu estou muito preocupado com as intenções do Sr. Plutão von Hades, ele está sempre, sempre de olho na Perséfone, conversando sem parar. Em nosso costume, os filhos de Hércules devem proteger sua pureza contra as influências do mal, que estão por toda parte. Minha filha é pura e, obviamente, é uma moça muito educada e sempre ouve com atenção, ri um pouco, mas tenho certeza que isso a incomoda muito e eu quero que pare. Agora.

Moça educada? Incomodada? De quem ele está falando? Com certeza não é essa Perséfone, deve ser outra. Todos na nave sabiam do namorico secreto de Perséfone e Hades, não era nenhum mistério de detetive. "Pobre rapaz", pensou consigo mesmo o comandante. "Ainda bem que não é mulher dele."
 - Doutor Saturno von Cronos, eu entendo a sua preocupação, de verdade. O senhor é um excelente pai, embora nesse assunto eu não entenda muito. (deixa os olhos abaixarem um instante, mas logo se recompõe, devia mostrar sua força militar). Eu não estou alheio à situação, doutor, pode ficar tranquilo, afinal é meu dever zelar pelo bem da tripulação. Eu vou descer lá para termos uma conversa.

- Obrigado comandante por ter entendido, eu vou com o senhor.

 - Ah, não, não doutor, não precisa não. - Cada "não" soava como um tapa na cara. - Eu cuido disso, por favor, fique tranquilo. Espero que o senhor entenda meu trabalho, a amizade e o bem estar de todos é fundamental para o sucesso da missão, e espero que todos nós possamos nos entender.

 - Eu entendo Comandante, obrigado.

 A nave era redonda, tudo é redondo, nenhuma parede reta para se pendurar um quadro, nenhuma porta retangular. As escotilhas de emergência, no caso de perda de atmosfera, pareciam os obturadores de câmera fotográfica, e permaneciam fechados até que alguém tocasse a placa eletrônica ao lado. A pessoa teria 5 segundos para passar, e então era automaticamente fechada, como um cortador de charutos do inferno. Da cabine, passando pela escotilha de emergência, chega-se imediatamente a um corredor circular, o deck superior. O piso é de grade metálica, em um formato estriado especial que conduz o campo magnético para fora da nave e proporciona a atração da gravidade. A maior discussão entre os cientistas e o Comandante foi se deveriam fazer o piso transparente ou opaco.

 - Mas Comandante, o piso opaco melhorará a eficiência de seus escudos em 12%, e a gravidade será exatamente a mesma de Gaia, seria como se nunca tivessem saído do planeta.

 - Não me importa. Eu preciso ter a visão total da nave o tempo todo, não posso ter todo o deck inferior escondido de mim. Aumentem a potência do reator para os escudos, dá na mesma.

- Mas Comandante, a gravidade aumentada seria 20% a mais que no planeta, uma pessoa de 80Kg pesaria quase 100kg durante a viagem.

- FAÇA!

No centro de tudo, a rosquinha do diabo. O reator era um monstro, e ficava visível a todos de toda parte da nave. Cabos elétricos e conexões hidráulicas zuniam e rugiam fazendo barulhos intermitentes, vapores condensados eram expelidos de válvulas de segurança como o nariz de um dragão adormecido. A força de atração magnética tinha sido desviada pelo piso até os escudos da nave, mas mesmo assim, era possível sentir a besta chamando para um abraço. Não tinha um mecânico chefe, nenhum engenheiro responsável. Aquilo assustava o Comandante:

 - Quem será o engenheiro responsável pela manutenção? - Pergunta para o professor cientista.

 - Ninguém comandante. Uma vez montado e ligado, não há nada que alguém possa fazer. Coisas simples como substituir uma linha hidráulica ou uma conexão elétrica, o senhor mesmo pode fazer, as redundâncias irão proteger a nave. Mas se houver uma falha catastrófica, ou se o reator não tiver mais potência para manter a anti-matéria contida, a explosão acabaria com metade do sistema solar, não adianta correr. Cuide bem do Disco de Apolo, Comandante, todas as nossas vidas dependem do senhor. Lembre-se: Em caso de emergência, atire a nave no sol, e rezaremos para que ele não vire uma SuperNova.

O deck transparente foi difícil de se acostumar. Como um espelho de água, uma pessoa andaria em cima enquanto outra andaria em baixo, seus pés tocando a mesma placa do piso, um efeito ótico perturbador. Um buraco no chão com uma cadeira giratória servia de elevador entre os planos gravitacionais. O efeito de giro nos órgãos internos era horrível, enquanto seu coração e pulmões eram comprimidos para os  pés, seu estômago subia até o pescoço. O comandante sabia que o piso deveria ser transparente pois sua tripulação tinha alguns segredinhos, um direito à privacidade difícil de manter em uma sociedade liberal e democrática. No deck inferior, na estufa, conversavam Perséfone e Plutão, com uma certa intimidade.

 - Atenção no deck, Comandante presente ! - Uma piada militar, raramente compreendida pelos civis.

 - Como vai comandante? Eu tenho aqui o seu relatório sobre o crescimento das plantas, a gravidade aumentada não foi problema, as plantas se adaptaram muito bem. Eu por outro lado, estou horrível. Nunca mais subirei em uma balança enquanto viver. - Diz Perséfone fazendo uma piada feminina, raramente compreendida pelos homens.

 - Esse trabalho não é do seu pai? Ele é o biólogo, você é a médica. A não ser que tenha crescido uma couve flor nas orelhas do Sr. Plutão von Hades.

Plutão von Hades era filho de pais Troianos, idolatradores de Hera, um povo perseguido, odiado, mau compreendido, sofrido. Seu país não era oficialmente reconhecido pela União das Pátrias, e seus inimigos mortais, os Latinos, eram muito ricos e influentes na política, muito vingativos e principalmente, muito intolerantes com a diversidade cultural de Gaia. Os Renascidos de Hércules em particular, uma seita que idolatrava os dozes trabalhos de Hércules von Héracles, juraram nunca dormir enquanto os seguidores de Hera estiverem vivos, aquela que pôs duas serpentes no berço do semi-deus. A guerra, no entanto, não era abertamente declarada pela pressão da opinião pública, e por que apesar da guerra ser um investimento lucrativo, a guerra fria era mais lucrativa ainda. O Comandante foi muito corajoso em trazer a bordo Plutão, junto com Saturno e Perséfone. Esse barril de pólvora poderia fazer perder toda a missão. Sua arma secreta, amor.

 - HAHA, muito engraçado Comandante. Como geólogo, é meu trabalho analisar a qualidade do solo da estufa.

 - Corta essa Sr. Plutão, todos nós já sabemos, vamos direto ao assunto, por favor. O pai de Perséfone está desconfiado e me pediu para separar vocês dois. Eu vim aqui para pedir aos senhores que sejam discretos, ou melhor ainda, conversem com o Doutor, façam disso um assunto oficial.

 - Sr, Comandante, eu compreendo. Peço desculpas por envolver o senhor nisso. Como o senhor sabe, eu sou Troiano e o pai de Perséfone é Herculano, ele nunca, nunca, nem morto, permitiria nosso relacionamento. O único motivo pelo qual ele me tolera, é que eu mudei meu verdadeiro nome para Plutão. O senhor é bem intencionado, e por ter me dado essa oportunidade serei eternamente grato. Mas o senhor não compreende, em termos de religião, o filho de meu inimigo já nasce culpado por todos os crimes de seus ancestrais. A criança já nasce julgada, culpada, e condenada à morte. Eu não estou apenas roubando o coração da filha dele. Eu estou levando a filha dele junto comigo para o inferno, e isso ele não irá permitir jamais. - Perséfone, sempre tão madura e independente, dessa vez sente uma vontade incontrolável de chorar e agarra o braço de Hades como se fosse uma criança.

 - (suspiro), eu não entendo. Eu sou um militar, desde meus 8 anos de idade. O Sargento gritava, eu engolia o choro e obedecia. Todos os dias, depois de cumprida minhas tarefas, uma missão era passada a ser cumprida no horário. Geralmente era alguma coisa idiota feito lavar os banheiros, ou lavar os veículos, ou lavar o prédio, uma forma de provar nossa obediência. Um dia, eu já tinha 17 anos, me deram um rifle, me puseram em um avião e me mandaram a Faixa de Gizé. A única coisa que me disseram foi "Você fica desse lado de cá da cerca e atira em tudo que se mexe do lado de lá da cerca." Nos primeiro dois dias eu atirei. 29 mortos confirmados. Os rapazes marcavam com giz cada morte confirmada em seus capacetes, disputando entre si. Mas aquilo começou a me incomodar, porque eles não estavam atirando balas em nós. Nenhuma bala, nenhuma explosão, nada que fosse letal. Só pedras. PEDRAS. Um dia, eu declarei cessar-fogo, pulei a cerca e fui lá ver de perto. Um inimigo que eu matei estava deitado de costas, então eu virei ele. Era um rapaz, de 17 anos, magro, sujo, fedido, segurando uma pedra na mão. Mais tarde, depois de render e revistar os prisioneiros eu fui até a vila inimiga, e vi um velho gritando para uma criança, gesticulando naquela língua bizarra que parece ter apenas a vogal "A" e um monte de consoantes guturais, apontando para a cerca. O velho estava pegando todas as crianças da vila, dando uma pedra para cada uma, e mandando elas para a cerca, para que nós as matássemos. Eu dei um tiro no velho, na orelha direita, em frente à todas aquelas crianças. Elas me olharam aterrorizadas. Eu comecei a chorar, desarmei meu rifle, e caí de joelhos. Uma das crianças veio até mim, e me entregou a pedra dele, essa aqui que tenho no meu bolso.

 - Comandante, eu ...

 - Não, ISSO É ERRADO! Não me importa que a maioria do mundo se odeie, isso é problema deles. O que eu faço da minha vida, é problema meu. E o que vocês estão fazendo da vida de vocês não é um pecado, e vou defender o amor de vocês até a morte. - As palavras sinceras do comandante valeram um abraço apertado de Perséfone e duas lágrimas de Plutão, grato pela história de perdão. Plutão sabia quem era o velho da história, era um dos Filhos de Hera, velhos feiticeiros corruptos, que diziam conversar com Hera e transmitiam a vontade dela para o povo. Na verdade, os velhos manipulavam aquele povo ignorante para sua própria agenda política.

Na cabine do piloto, Dr. Saturno von Cronos, muito emocionado, segurava seu livro sagrado nas mãos. O choro era uma mistura de ódio e frustração. O comandante esqueceu de desligar as câmeras internas, e o áudio transmitido foi uma faca quente no coração tradicional e conservador do pobre viúvo. Sua única filha, seu tesouro, seu legado, sua descendente, acabou de jogar toda a história de um povo no lixo para perseguir um amor impossível. IMPOSSÍVEL. "Aquele povo não sabe o que é amor, eles só sabem fazer guerra e matar. COVARDES." pensou consigo mesmo, socando o console e apertando alguns botões sem querer. A Nave fez alguns sons estranhos, alguns alarmes dispararam, o que fez com que o Dr saísse correndo pela escotilha direto para seu laboratório, na tentativa de esconder sua descoberta por enquanto. "Preciso salvar a alma de minha filha. Tem que parecer um acidente." pensou.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Fantasmas de Marte - Capítulo 4

A VIAGEM

 - ANUKET, VENHA RÁPIDO, A CARRUAGEM REAL VEIO TE BUSCAR ! - disse sua mãe Ísis, em uma mistura de sentimentos confusos e contraditórios. Por um lado, estava muito orgulhosa da filha, pois ela estaria cumprindo com seu dever ao faraó, a encarnação de Rá. Talvez se ela servisse bem, e agradasse aos nobres, eles poderiam lhe agraciar com um convite para trabalhar na pirâmide, talvez ela fosse elevada ao estatus de nobre da corte. Por outro lado, pensou ela, sua filha correria o risco de perder seu passaporte, então ela seria possuída por sua beleza e inteligência, e nunca mais veria seus pais, seu gato, seu lar, e principalmente seu céu estrelado que tanto ama.

 Um suspiro lhe escapa do peito, lhe arrancando uma lágrima solitária escorrendo por seu sorriso, hoje mais belo que nunca. Não, é claro que isso era impossível. Em toda a história daquela civilização, nunca jamais um nobre promoveu o estatus de um servo camponês, isso era simplesmente impossível. Toda a corte do faraó era nascida e criada dentro da pirâmide, sempre foi assim, com algumas excessões de filhos bastardos de servas possuídas tentando se firmar no poder. Interessante como funciona a cabeça do ser humano, sempre procurando por diferenças, sempre medindo e comparando qualidades e defeitos. Naquela sociedade, não importava a cor da pele, nenhum traço físico, apenas a localização do seu berço, a origem de sua família. Foi pensando nisso que um dos antigos faraós Rá expediu a lei do camponês, basicamente exigindo que todos os servos esquecessem seu sobrenome para sempre. Somente nobres teriam o privilégio do nome da família, o privilégio de servir diretamente ao faraó e de compartilhar das dádivas de sua divindade, sua comida, suas roupas, sua morada, seus servos.

Um último abraço na sua mãe, que não consegue dizer nada. Seu pai, hesitante, lhe estende a mão, mas dessa vez tentando ser delicado, e então a estranheza do gesto lhe assusta e ele corre para dentro de casa antes que pudesse tocar a menina. Ele mesmo não compreende o que sua mão tentou fazer, seria uma espécie de tapa na cabeça, devagar e sem força, mas ao mesmo tempo queria lhe esfregar os cabelos. Mas seu sentimento não era o de ferir a pobre menina, e isso o assustou. Ele sentiu isso uma vez no passado, a muito tempo, quando sua esposa prometida Ísis lhe foi entregue em sua casa. Naquela época, sem o copo de cerveja na mão, ele tentou um gesto similar, o que acabou assustando a então pequena Ísis, que saiu correndo, chorando, para seu espanto. Nunca mais farei isso, disse ele.

Na carruagem real, os servos andavam atrás dos dois homens, filhos bastardos de servas e nobres, que lhes eram concedidos privilégios de nobreza mas deveriam servir em trabalhos menos agradáveis, na parte administrativa da pirâmide. Só havia um momento da vida do servo que ele poderia andar de carruagem, e esse momento seria seguido de sua mumificação. A longa jornada não era problema, os camponeses eram acostumados com a falta de conforto. Seriam dois dias, com quatro paradas para comer e dormir. Cada servo levava consigo uma pequena bolsa de couro de cabra, com alguns pertences básicos. Uma escova de cabelo e uma escova de dentes, uma roupa de baixo, um reparo de sandália caso a alça arrebentasse, e um frasco de óleo perfumado, exigência de um dos faraós do passado, que tinha um nariz poderoso, e reclamava constantemente dos ventos que sopravam do campo para a cidade.

Anuket exibia orgulhosa seu passaporte, sem perceber a revolta crescente nos olhos de Anúbis, uma das filhas do vizinho. Anúbis nunca recebeu maus tratos de seu pai, muito pelo contrário. Era comum a menina ser pega pelos guardas saindo dos limites da zona proibida aos camponeses, sem um passe, e quando retornada a sua casa seu pai ora estava dormindo, ora dizia :" Deixa ela aí, desculpa o incômodo seu guarda, senhor." Um incômodo. Talvez ela não estivesse incomodando o suficiente para ser notada, talvez ela já tivesse incomodado mais que o suficiente para ser ignorada. Não mais. Ela não seria mais um incômodo. Seus planos não lhe agradavam no começo, ela esperava ser possuída de propósito, na esperança que seu pai um dia notasse sua ausência e viesse tentar um resgate. Mas vendo o passaporte de Anuket, uma idéia nefasta lhe dominava o pensamento. Ela poderia usar esse passaporte, e uma túnica real roubada, para se passar de nobre no palácio. Isso sim é um plano genial, pensou ela.

 - Anuket, lembra de mim, amiga? Que bom te ver aqui! Eu estava com medo de ir sozinha mas com você aqui tudo vai ficar bem. - A sua mais falsa imitação de boneca de desenho animado foi muito convincente.

 - Anúbis, bom te ver também. - Na verdade não, mas a educação vem de casa. - Não se preocupe, o meu (é difícil dizer isso em voz alta, breve pausa)  marido é um mensageiro real, e eu combinei com ele de me buscar no último dia, antes do fechamento. Posso te dar uma carona ! - A pé, é claro. Carona nesse caso era a simples presença do mensageiro real que podia ir e vir livremente. E o fechamento era uma hora crítica para as servas, principalmente as mais belas. Era o momento quando os nobres se retiravam da festa, exaustos, em êxtase, mas o fato de voltar pra casa exige que passe na lojinha e se compre uma lembrancinha. Só que nesse caso não tem lojinha, e a lembrancinha iria te servir para o resto da vida, ou da beleza na maioria dos casos.

A OUTRA VIAGEM

 - Todos os sistemas verdes, velocidade constante, radar limpo, gravidade na nave é de 123% a de Gaia, dentro do esperado, Comandante senhor.

 - Obrigado Sr. Baco von Dionísio. - As suspeitas do Comandante Júpiter se revelaram verdadeiras. O incidente de Baco provocou uma mudança profunda em sua personalidade. O antes bobo-da-corte agora se tornou o palhaço triste, quase uma pessoa normal. Isso lhe preocupava porque era justamente o motivo por ter escolhido Baco entre dezenas de outros candidatos, capacidade de manter a moral elevada da tripulação, e manter o capitão sempre com os nervos à flor-da-pele, alerta, irritado, com o coldre aberto e a arma destravada. Discretamente, o Comandante deveria fazer de tudo que fosse possível para trazer Baco de volta à realidade. E a solução estava bem ali, na mala enviada pelo presidente, entre outras coisas uma garrafa da melhor cerveja Strong Red Ale do planeta, fermentada de forma tradicional com o melhor mel e geléia real das mais finas abelhas Jataí, muito raras por serem impossíveis de se criar em cativeiro.

 - Atenção, Todos reunídos no deck superior em 5 minutos, por favor. - disse o Comandante no interfone.

 - POR FAVOR ? - De forma espontânea e sem ensaio, todos na nave se perguntam ao mesmo tempo, o que o comandante quis dizer com "por favor" ? Afinal, ele era o Comandante, o líder, o fazedor das leis. Não era de seu feitio pedir por favor, nunca. Talvez o homem estivesse com problemas, talvez estivesse com câncer cerebral inoperável, talvez fosse alguma técnica de marketing subliminar. Uma coisa é certa, em 15 segundos todos estavam reunidos no deck superior mortos de curiosidade para saber o que por favor significava.

 - Uau, isso foi rápido. - disse o Comandante com a mala presidencial nas mãos, o selo presidencial estampado na mala visível para todos. - Primeiro, quero dizer a vocês que o lançamento foi um sucesso, e como todos sabem, na engenharia aeroespacial 90% dos acidentes ocorrem na decolagem ou na aterrissagem, então essa é uma boa notícia. Como Comandante da missão vocês devem me ver como O chefe, O chato, O paizão exigente, mas por favor, se nós vamos ficar trancados em uma lata de sardinhas durante 4 meses, é melhor que sejamos mais do que profissionais, espero que possamos ser amigos. - Todos concordaram com a cabeça, até mesmo o Capitão que descruzou os braços e tirou a boina, em sinal de respeito. - Essa mala que eu tenho aqui é o plano B do presidente. Ele me chamou em um canto da sala e disse (faz voz rouca e olhar vesgo)"Se der merd@, usa a mala." (risos), e conhecendo o velho eu achei que tinha uma ogiva nuclear ou sei lá. MAS, para minha surpresa, aqui dentro tem uns presentes muito, muito interessantes, que eu quero compartilhar com meus amigos.

- E quando é que eles chegam? - Deu certo, Baco fez uma piada, bem na hora. O timing de Baco sempre foi perfeito, a nave explodiu de risos, Perséfone teve de ser amparada por seu pai para não cair no chão, até o Capitão riu, envergonhado e cobrindo a boca com medo que alguém notasse. O Comandante riu, ameaçou um tapa na nuca de Baco, e teve seu momento de papai Noel.

 - Já que todos estão muito ocupados rindo, vou começar com o Senhor, Sr. Baco von Dionísio, acredito que essa garrafa lhe pertence. - Ao entregar a garrafa, Baco arregalou os olhos, e abriu um sorriso de orelha a orelha como se seu queixo fosse cair no chão. Ele sabia tudo sobre cervejas, e sabia, como a poeira na garrafa e o rótulo amarelado pela humidade denunciavam, que aquela era uma garrafa que não poderia ser aberta de qualquer jeito, tomada de qualquer forma, essa garrafa merecia toda a honra, respeito e admiração de um verdadeiro amante de cervejas. Em um movimento quase involuntário, Baco salta e agarra o Comandante como se fosse uma garotinha ganhando seu primeiro ursinho de pelúcia, a cabeça pousada no ombro do comandante que faz uma cara de nojo completa a cena de filme de comédia pastelão. Antes de qualquer reação, Baco segura a garrafa como se fosse um bebê prematuro, e faz um discurso, à La Baco:

 - Obrigado, Obrigado a todos, Ai gente, que emoção (fala fino secando as lágrimas imaginárias). Primeiro eu quero agradescer a academia por essa nomeação... - O Comandante sabia que o Baco voltando ao normal, significava que o Capitão voltaria ao normal, ou seja, antes que o Baco levasse um tiro, era melhor interromper a sua performance.

 - Ficamos felizes pelo senhor, Sr. Baco von Dionísio, se sobrar algumas gotas por favor lembre-se do papai aqui. Continuando - Baco sai saltitando para apagar um alarme no painel, o Capitão sério coloca sua boina a exatos 17,5° de inclinação Leste, como manda o figurino militar. O comandante sabia melhor que ninguém que se você der um queijo ao rato, tenha em mãos uma sardinha para o gato, senão.... - Capitão Marte von Ares, infelizmente eu não conheço o senhor com grande intimidade, mas eu passei a minha vida toda no exército e sei que existem 2 coisas que um militar nunca tira da sua cabeça. Armas e mulheres. Eu tenho aqui uma coisa que acho que o Senhor vai querer guardar em segredo. - O Capitão adianta-se, tira algo da mala, uma caixa preta e um pacote marrom de papel, amarrado com um barbante, de forma retangular. O pacote marrom é rapidamente escondido longe da vista de todos, que como cortesia, fingiram não ter entendido a indireta extremamente direta do comandante. Mas a caixa preta foi aberta para todos verem.

 - Pelos deuses. Isso é lindo. Obrigado Senhor. - O Capitão tira algo da mala com uma delicadeza espantosa para alguém com seu histórico violento. Seus olhos brilham como se estivesse vendo seu filho nascer, e de certa forma foi isso mesmo que aconteceu. Todos ficam surpresos ao verem o que a princípio parece ser um revólver de modelo antigo, porém muito bonito, de pintura metálico verde musgo, decorado com pedras preciosas e detalhes em ouro, de cabo madre-pérola, meio grande mas muito leve. Mas não era somente um revólver velho para decorar a parede. Era o melhor e mais avançado sistema de proteção pessoal, como dizia no folheto informativo, do mais secreto desvio de verbas do exército planetário, essa última parte ficou de fora do folheto. Uma arma com 3 munições diferentes, anti pessoal ponta oca dun-dun, anti-armadura de alta penetração, tiro espalhado para curtas distâncias com ricochete, escudo magnético capaz de desacelerar e desviar balas metálicas, choque não letal para capturar o inimigo vivo, reconhecimento de digital evita roubo, comando de voz, GPS, rádio MP3, bluetooth, roteador wi-fi. Simplesmente, perfeita. Na maleta ficaram alguns acessórios, o carregador USB, e 4 tipos de munição, a ponta oca cobreada, a flecha de carbono anti-armadura, a cápsula vermelha cheia de chumbinho, e uma em forma de rosquinha. Ninguém percebeu.

- Vou chamá-la de Rita, em homenagem a minha avó que me criou até os meus 12 anos.  - Disse o capitão com a voz baixa e doce. Foi a primeira vez, e certamente a última, que o Capitão abriu seu coração em público. A oportunidade não poderia passar, pensou o comandante, que parabenizou o Capitão com um tapa nos ombros, como quem dá os parabéns ao papai de primeira viagem. Seguindo o exemplo, todos fazem o mesmo, exceto Baco, é claro.

"Você é um gênio Comandante Júpiter von Zeus, crise resolvida." pensa consigo mesmo o orgulhoso Comandante. Os demais presentes foram muito bem recebidos pela tripulação civil, embora eles nunca tivessem sido um risco para a missão. Questão de justiça, pensou o comandante, já que se a tripulação fosse toda militar, os demais seriam ordenados a retornar aos seus postos, e retornariam sem reclamar. A noite no espaço nunca acaba, mas a nave tinha sido projetada para sustentar a vida por décadas, já que seu motor movido a anti-matéria não poderia simplesmente ser desligado e guardado na garagem. "Essa nave é uma Bênção, e uma maldição." disse o cientista na conferência de imprensa, 2 dias atrás. Foi uma conferência reservada a imprensa especializada, Tv a cabo e publicações científicas, muito diferente dos abutres sensacionalistas.

 - O sistema de propulsão da nave não é nada de outro mundo, na verdade é muito simples. - explica o cientista chefe da engenharia aeroespacial - A anti-matéria tem duas características muito perigosas, a primeira é que se tocar a matéria normal mesmo que por um milésimo de segundo, uma reação explosiva de pura energia destrói tudo em um raio de até anos-luz de distância. Para guardar essa força divina - era muito raro um cientista evocar a presença de Deus em suas equações - não podemos simplesmente usar um vidro de azeitonas em conserva, é necessário um recipiente de vácuo altamente magnetizado. A princípio estávamos desenvolvendo esse recipiente quando uma teoria surgiu no quadro branco: E se pudéssemos concentrar essa força magnética em um único ponto? A matemática provou ser impossível, não em um ponto, mas uma reta, dois pontos, Norte e Sul. Assim, não foi possível, a princípio criar um recipiente em que a anti-matéria ficasse parada em um ponto, ela se moveria de sul para norte a velocidade da luz, seria como uma arma.

Eles poderiam ser uma imprensa especializada e civilizada, mas o professor descobriria da maneira mais difícil que uma vez imprensa, sempre imprensa: - Professor, sua descoberta influenciou a descoberta de um novo tipo de arma? Vocês pretendem distribuir para os soldados? Ela seria colocada em um satélite em órbita para ameaçar os inimigos da democracia?

 - Silêncio por favor, por favor. Eu não disse que foi feita uma arma, eu simplesmente usei um mau exemplo, me desculpem. Vamos continuar, sim? Um dos meus assistentes brilhantemente imaginou uma solução para esse paradoxo. E se o Norte terminasse onde o Sul começa, como um círculo? A anti-matéria ficaria dando voltas nela mesma como se fosse um daqueles antigos aceleradores de partículas que usamos no passado. Fizemos um protótipo com apenas um único átomo de anti-matéria, e para a surpresa geral, a força magnética foi tanta que todos os objetos metálicos se dobraram na direção do núcleo em forma de rosquinha. Por sorte, a decadência nuclear fez com que o anti-átomo se estabilizasse em alguns segundos antes que o prédio todo caísse em nossas cabeças. Muitas teorias depois, aqui estamos. O motor anti-matéria. Depois de fabricado, montado e ligado, ele funciona ininterruptamente durante décadas, sem reabastecer, sem queimar combustível, ele gera sua própria energia e mais 150 MWatts por mol de antimatéria, seu campo eletro-magnético é tão forte que serve de escudo contra partículas em alta-velocidade e ao mesmo tempo cria uma gravidade artificial no plano equatorial da rosquinha, como é carinhosamente conhecido, tanto em cima quanto em baixo, ou seja, uma pessoa pode ficar em pé acima do núcleo e outra pessoa fica em pé de ponta cabeça, na parte de baixo, por isso fizemos a nave em formato de disco, como dois pratos de sopa com a boca se beijando - Os repórteres se entreolharam pensando "esse cara não sai muito, né?" - enfim, acho que isso é o básico. perguntas?

 - Professor, como a nave se movimenta?

- Bem lembrado, eu esqueci de dizer, tem razão. - O professor começa a murmurar algo para si mesmo, como se estivesse fazendo anotações mentais gesticulando com as mãos como se estivesse apagando e escrevendo algo em uma lousa imaginária, uma cena que mereceu muitas fotos, mas não seriam publicadas, apenas uma piada interna entre os fotógrafos. - Bom, é isso, estamos todos de acordo. - Ele está de acordo com quem? Agora a pouco estava falando sozinho. Muito estranho - Se vocês puderem imaginar uma barra retangular de ímã, por favor. Me desculpem, eu não trouxe nenhum auxílio visual, acho que me esqueci de novo.

Nesse momento a sala toda se levanta desesperada - Não, não professor, tá tudo bem, não precisa, pode continuar, pelo amor dos deuses. - disse um repórter apoiado de seus colegas temendo outra lousa imaginária.

 - Ok, então o campo magnético desse Ímã retangular sai do pólo norte, se curva lateralmente e retorna pelo pólo sul, correto? Mas no reator de rosquinha - Toda vez que o professor fala rosquinha, alguns estômagos roncam na platéia entediada - o pólo norte e sul não é definido, pois eles giram axialmente. A resultante do giro é que no centro do furo surge uma força, como se fosse, sei lá, tipo uma roda de bicicleta girando, um giroscópio, só que mais complexo que isso. A força, como diria Platão, tem direção e sentido, ela começa em A e termina em B. No nosso caso, nós direcionamos essa força para baixo, e o resultado é que o reator sobe, voa, para cima, ignorando completamente a gravidade, fica mais leve, só que pesado. O que quero dizer, é que não temos certeza absoluta como o motor voa, mas voa. Uma teoria diz que a gravidade dobra o espaço, e a nave cai no buraco, e se o buraco anda pra frente a gente cai para frente. Outra teoria diz que nós sintonizamos a "frequência" (fala devagar mexendo os dedos em aspas) do centro da galáxia puxando ou repelindo, e navegamos como um barco no oceano, só que o oceano é 2d e o espaço 3d, tipo assim. (faz gestos incompreensíveis)

Com medo de prolongar mais o sofrimento, os repórteres se dão por satisfeitos e se retiram, após uma breve salva de palmas. - Quem paga as rosquinhas? - grita um deles, provocando o riso de todos. Todos, exceto um, sempre no seu terno marrom, sua presença discreta observa tudo com atenção. Em seus pensamentos, um filme passa em loop, o Capitão grita, todos caídos no chão, muita fumaça, faíscas, o Comandante pula para tentar tirar a arma do Capitão, ele faz a mira no reator, BANG. Seria perfeito, a missão fracassada, os cientistas desacreditados, o poder do Olho de Hórus von Osíris crescendo para salvar o povo das mentiras científicas. Se o homem do terno marrom fosse capaz de sorrir, essa seria a hora.

sábado, 15 de novembro de 2014

Fantasmas de Marte - Capítulo 3

O INCIDENTE

Na manhã do dia seguinte, de volta ao centro de controle da missão, a tripulação se reúne para o briefing marcado às 8:00h.

 - Estamos todos aqui? - pergunta o comandante.

 - Senhor, estão atrasados Sra Perséfone e Sr. Plutão von Hades. - O Capitão também notou a ausência de Baco von Dionísio, mas como dizia o ditado: "É bom demais para ser verdade".

 - E o Sr. Baco, posso ver. Como vocês esperam que cheguemos até Marte se antes de começar já estamos atrasados? Eu não acredito nisso.

 - Senhor, devo colocar meus homens nas ruas? - O capitão poderia muito bem tomar suas próprias decisões, se quisesse, afinal o Comandante tinha uma patente inferior. Ora, o Capitão poderia dominar o mundo se quisesse. Mas os militares tem uma filosofia de vida acima do bem e do mau, sem levar em conta orgulhos e desejos, acima de tudo vem o dever. E nesse momento, seu dever era de fazer tudo o que o filhinho almofadinha do presidente quisesse.

 - Obrigado Capitão, mas acredito que tropas militares revistando casas e ruas pegaria muito mal para nossa imagem como missão de paz. Os homens do presidente cuidarão disso. - Um pensamento lhe passou pela cabeça, quando foi a última vez que ele disse a palavra pai? Uma noite chuvosa, um relâmpago, uma limousine indo embora, o vidro da janela subindo, a mão do sargento em seu ombro. As lembranças mais difíceis de esquecer são as piores.

 - Sr. Júpiter von Zeus, hoje de manhã eu passei pelo quarto de hotel de minha filha, ela me disse que se atrasaria uns minutos devido a uma indisposição estomacal. Como o senhor sabe, somos membros da Congregação Renascidos de Hércules, e essas comidas artificiais da cidade nos fazem mal. - Pobre Dr. Saturno Cronos, em sua inocência de pai amoroso e religioso fiel, nunca passaria pela sua cabeça que sua filha na verdade passou a noite dançando e bebendo na companhia de seu afeto secreto, Dr. Plutão von Hades. Aliás, essa não é a pior parte. Dr. Plutão é filho de pais Troianos, idolatravam Hera, a mulher que tentou matar Hércules no berço com duas serpentes. Algumas vezes chegou a desconfiar, mas imediatamente sua fé e devoção os fazem cair de joelhos e pedir perdão pelos pensamentos impuros.

 - Não precisa ser evangélico para passar mal com essa comida de hotel, doutor. Fique tranquilo por favor. - Não somente o comandante, mas todos no planeta tinham muito afeto e respeito pelos Renascidos de Hércules. Não respeito intelectual, é claro, pois eram considerados loucos e crianças inocentes, achar que Hércules voltaria a nascer para lutar contra os titãs do mundo de novo. Mais um respeito como uma amizade, uma confiança de que são inofensivos, apesar de um pouco reclusos e de um certo ar de superioridade.

 - Capitão, Comandante. Estou preocupado com Baco. Sabendo de seu histórico de abusos, eu sinto que ele pode ter ido longe demais dessa vez. - Dr. Hypnossono sabia, através de sua capacidade mediúnica, que certas pessoas tem uma habilidade de sentir coisas que não vemos. Ele não sabia definir com clareza científica como funciona essa habilidade, outrora conhecida como "Oráculo de Delfos", e nunca ousaria revelar a ninguém sua descendência direta do Oráculo. Conta a lenda que o Imperador Alexandre XLVI consultou o Oráculo pouco antes da Batalha de Waterloo, e devido ao resultado desastroso, sua credibilidade foi destruída e o grande templo demolido em ruínas. "Deus nos usa de Seus instrumentos, devemos fazer a Sua vontade." dizia Hypnossono para si mesmo.

Entra na sala Perséfone, com uma aparência horrível, olheiras, a voz rouca, o cheiro de colônia misturado com cigarro e cerveja ransosa, que na sua pressa esquece de fazer a saudação característica da sua fé para seu pai, que nesse momento está em dúvida se deve sentir pena da filha, ou vergonha.

 - Senhores, desculpa o atraso, eu não dormi direito, meu pai já explicou porque, vamos prosseguir.

 - Sangue de Hércules te cubra, filha.

 - Aos 12 trabalhos hoje e sempre, pai.

 - Onde está o Dr. Plutão von Hades? - Todos já tinham entendido perfeitamente tudo que havia acontecido na noite anterior, exceto é claro, o inocente e religioso pai orgulhoso.

 - Eu vi ele estacionar o carro quando entrei, daqui a pouco ele estará aqui. O que eu perdi da reunião? - tentando desviar o assunto como sempre, já que pediu para o geólogo que aguardasse uns minutos lá fora, assim os dois não seriam vistos juntos.

 - Então vamos assumir que Sr. Baco von Dionísio realmente precisa de ajuda para chegar até aqui, como sugeriu Dr. Hypnossono, com licença que preciso fazer uma ligação para a segurança do presidente, vamos adiar a reunião para as 10h, acho que será o suficiente. - Duas coisas que o comandante odiava muito, ligar para seu pai, e fazer papel de incompetente na frente de todos. Baco vai pagar.

 - Senhor Presidente, temos uma situação com o Sr. Baco von Dionísio, preciso de ajuda para localizá-lo.

 - Um momento, vou acionar a segurança, não desliga.

 Momentos depois. - Comandante, Sr. Baco não se registrou em seu quarto de hotel ontem à noite, seu celular não atende, seu carro e suas roupas estão intactos. Ele desapareceu.

- FILHO DA MEDUSA. Eu nunca deveria ter confiado nesse imbecil, ele não consegue ficar vivo, quieto, sentado em uma cadeira lendo um livro, até o final dessa que é só, SÓMENTE, a missão mais importante da história da humanidade. É melhor para ele que seus homens o encontrem antes de mim, Sr. Presidente.

 - Calma comandante. Como o Sr bem sabe, vivemos em tempos de paz, apesar dos religiosos. Sr. Baco, sendo Ateu, deve ter se desentendido em alguma briga de bar, e agora deve estar dormindo em alguma lixeira. Vamos encontrá-lo. - Apesar de suas palavras encorajadoras, o presidente nunca se enganou. Finalmente os religiosos conseguiram ferrar com a missão de seu filho, a missão que "enfiaria o dedo no olho dos Deuses", como declarou um dos líderes das inúmeras seitas do planeta. Essa missão era muito importante para o Presidente, já que a colonização de uma terra distante e fora do alcance do poder religioso seria um símbolo de liberdade intelectual para seu povo. "Meu Deus, se o olho de Hórus von Osíris pegou Baco, vamos encontrá-lo amarrado em um foguete com 50Kg de dinamite amarrado no peito." pensou ele, temendo que o maior inimigo da Democracia fizesse mais uma insanidade contra ele. Ataques suicidas entre os membros do olho eram comuns.

De volta à cidade, em um quarto mau iluminado, de paredes escuras e mau cheirosas de tanta humidade, sem janelas, o ar viciado sufocava o machucado e amordaçado Baco, que lutava para não perder a consciência e ao mesmo tempo não engasgar com o sangue que descia pelo seu nariz quebrado. Sendo Ateu, seus pensamentos eram uma mistura confusa de ódio e vingança, marinados no molho do medo e desespero. Nenhum pensamento lhe trazia esperança, "É o fim." dizia ele. Passos no corredor ecoam pelas paredes, um homem parece um exército marchando em sua direção. O homem se abaixa e encara calmamente o rosto coberto por um saco de pano, sua respiração lenta e pesada a centímetros do assustado piloto, como se o próprio Demônio Volcano estivesse ali. Em um movimento brusco, o saco lhe é arrancado da cabeça, o susto quase lhe faz borrar as calças. A luz cega seus olhos viciados na escuridão, ele não reconhece o rosto do agressor, apenas um vulto, ombros largos, paletó marrom um tom mais claro que a pele, cabeça redonda sem cabelos.

 - Senhor Baco, lembre-se de nossa conversa. Se tudo correr bem, nós lhe faremos o homem mais rico do planeta, dinheiro, mulheres, poder, tudo. Você pode ir embora agora. Não preciso dizer que o preço da traição é pior que a morte.

 - Sim, eu juro. Eu juro.

Saindo do quarto mofado, seus olhos ainda sensíveis, parece que ele está em uma propriedade rural abandonada, sabe-se lá onde. Uma velha caminhonete o espera de porta aberta e o motor já ligado. Ele está com muita dor, e sua visão ainda embaralhada, mas era o único jeito de sair dali. Fazia parte da conversa a desculpa convincente de que Baco teria cantado a mulher de um Marinheiro, que então  teria chamado 3 amigos para lhe ensinarem uma lição. Não era a primeira vez, embora nunca com tantos ferimentos. Uma hora depois, em um posto de beira de estrada, uma ligação para o governo, um helicóptero, um leito no hospital.

De volta ao centro de treinamento, pai e filho conversam, fingindo serem completos estranhos. A equipe científica estava preparada, na quarentena, tomando seu terceiro ou quarto banho químico, na esperança de não levar nenhuma peste mortal até o virgem planeta arenoso. O foguete estava sendo abastecido, e o efeito de aurora boreal da contenção magnética da anti-matéria provocava suspiros e gritos animados dos convidados da imprensa, testemunhas de uma nova era de avanços científicos, e talvez sociais, na precária balança do poder na nova Democracia de Gaia, uma guerra fria entre cientistas e religiosos. As discussões eram sempre as mesmas, devemos perseguir a matéria como caminho até a divindade, ou isso seria uma ofensa, que a criatura buscasse ser melhor que seus mestres? 

 - Ele vai continuar mesmo assim? Não parece ser coisa dele... - O Comandante conhecia bem Sr. Baco para saber que ao primeiro sinal de perigo, ele seria o primeiro a se esconder em baixo da cama. Mas dessa vez, sua atitude corajosa seria motivo de desconfiança. Ele teria segundas intenções em prosseguir com a missão, mesmo depois de ter sido dispensado pelos médicos?

 - Sr.  Baco von Dionísio insistiu muito. - Após o fim da guerra santa, quando o Estado e a Igreja foram finalmente separados em dois poderes paralelos, uma das tentativas de pacificar os povos rivais foi o de forçar a formalidade de sempre que for se referir a uma pessoa, seja amigo ou inimigo, era usual a formalidade Senhor(a) Nome von Pai(mãe). Uma pequena massagem no orgulho ferido, mas que trouxe resultados interessantes para a paz. - Além disso, Comandante, eu de minha parte vou permitir que ele prossiga porque, apesar da dispensa médica, ele não tem nenhum ferimento grave, nenhum osso quebrado e nenhum órgão interno rompido. Parece que a surra que ele levou foi apenas para amaciar a carne, seus amigos marinheiros foram muito generosos.

 - Eu diria que se um marinheiro bêbado que não consegue quebrar um braço é um novato muito incompetente. Eu vou escolher acreditar na sorte do Sr. Baco von Dionísio, porque a alternativa é que ele foi torturado para algum fim nefasto. Espero não estar cometendo um erro.

 - Filho, olha pra mim. - "Filho?", a palavra veio como um tapa na cara do Comandante, seu olhar assustado quase derrubou uma lágrima do velho e liso político. O velho tinha um coração escondido em alguma gaveta daquela carcaça blindada? - Eu sei o que você está pensando, que eu arrumei essa missão maluca pra ferrar com você enquanto meus inimigos derrubam o foguete e eu saio de vítima inocente dessa história. Mas eu juro, pelos deuses, pelo o que você quiser, que eu fiz de tudo para proteger você e sua missão. Eu sei que nunca fui seu pai. Na minha cabeça, eu sempre pensei comigo mesmo: "Vou dar ao meu filho o que sempre pedi de meu pai, que ele fosse embora.". É difícil para mim admitir meus erros, mas esse é fácil. Eu vejo em seus olhos, e você pode ver nos meus, que apesar da distância, existe amor entre nós. Eu errei, e você nunca vai me perdoar eu sei. Tive medo, FUI COVARDE, - de repente a conversa discreta chamou a atenção de algumas pessoas do centro - fui covarde em não tentar ser um pai melhor que seu avô, eu sei agora que deveria ter tentado. Mas...

 - Sr. Presidente - o Comandante lutava contra a vontade de abraçar o velho - eu sou o melhor capitão do exército democrático. Mas eu recusei a promoção para Major, e você sabe porque? Porque eu sei que assim que eu botasse um pé no poder, minha herança de família roubaria minha vida. Acho que a covardia também é hereditária.  - O comandante virou as costas para o que agora lhe parecia apenas mais um velho doente esperando um ônibus que nunca viria. O que ele esperava? Depois de uma vida lutando para fechar a ferida, o velho chega com uma faca quente, no dia mais importante de sua carreira? Não, essa conversa não poderia ter tido um tempo pior, não agora.

 - Foguete abastecido, tripulação vestida e imprensa calada. Tudo pronto para seu discurso, Sr. Presidente.

 - Obrigado Capitão. - O velho era mestre em guardar suas emoções para depois, agora ele só precisava de um gole de Absinto 75%, que trazia consigo na garrafinha do paletó. Todos prontos, a saraivada de flashs poderia causar um ataque epilético em uma estátua de mármore. Ele odiava isso.

Na coletiva de imprensa, agora ao ar livre, um professor de ciências tentava explicar o funcionamento da nova tecnologia de viagem espacial sem fumaça.

 - E então, como vocês devem saber, se a anti-matéria tocar a matéria normal, acontece uma enorme explosão. Mas nós desenvolvemos um método de conter a anti-matéria de forma que ela pudesse ser manuseada com segurança. Um recipiente toroidal, que vocês costumam chamar de "rosquinha", aquele bolinho com um furo no centro, faz a antimatéria girar em uma trajetória circular na velocidade de 99% a da luz, provocando um grande campo magnético de forma esférica que envolve todo o recipiente. No eixo perpendicular, centralizado com o furo, surge uma dobra no espaço, uma força resultante para cima normal ao plano, que faz com que todo o aparato fique sem peso, preso no espaço como um carrapato em um cachorro, HARAN, HARAN, HARAN - essa é sem dúvida a risada mais panaca do mundo. Ajeitando o óculos o professor continua a explicação, e a platéia continua a fingir interesse, até que o Sr. Presidente entra na sala, e é recebido com uma salva de palmas, não tanto com respeito mas sim como agradecimento por interromper o cientista.

 - Povo de Gaia, senhores acadêmicos e religiosos, estamos todos aqui, JUNTOS, reunidos para honrar igualmente a história humana e os deuses. - Uma pausa estratégica para ler os olhares da multidão, procurando algum fanático ofendido. Por enquanto tudo bem. - Esse momento é um sonho que se realiza para todos nós, a solda que irá unir nossa civilização como um só povo, UNIDO, - pensando bem, agora que ele está dizendo em voz alta, seu discurso ensaiado no banheiro do hotel ficou meio babaca, pensou ele. - unido em uma causa comum. Pela primeira vez na história, o Homem irá colonizar outro planeta, em paz, para explorar e complementar todas as nossas necessidades, para que nossas crianças nunca mais passem fome, frio ou sede. - Agora ele tinha certeza, esse discurso está horrível, todos sabem que em Marte não tem água. Droga, malditos secretários - Para provar minha sinceridade - O que ele está fazendo? pensou seu secretário, ouvindo as palavras que não estavam no discurso - eu envio ao cosmos o meu único filho, o bem mais precioso que eu tenho na vida, para ele arrisque a dele, e nos traga de volta a esperança de um futuro melhor para vocês todos. Obrigado.

O desabafo inesperado surpreendeu a todos, principalmente o Comandante que teve de se retirar às pressas. Após um breve silêncio, a platéia estupefata começa a aplaudir histericamente, muitas lágrimas emocionadas. Em um breve momento, os olhos parados e robóticos do Capitão ganham vida e buscam alguém na multidão. Um homem em particular lhe chama a atenção. Suas palmas, lentas e ritmadas, testemunham seu descontentamento bem disfarçado. Com seu olhar vidrado, avermelhado, seu rosto escondido atrás dos flashs das câmeras, nenhum sinal foi feito, nenhuma piscada. Como se fosse um telepata, o Capitão compreende a mensagem e acena discretamente com a cabeça, nada precisava ser dito, todos sabiam o que deveriam fazer, os dados da sorte estavam rolando.

Pouco tempo depois, a contagem inicia:

 - 10, sistemas verdes, 7, pré-ignição OK, fluxo de plasma OK, 3, 2, 1, FOGO.

Todos esperavam um estrondo e uma nuvem de fumaça, o ar quente em alta velocidade batendo no peito como os antigos foguetes à Lua faziam, mas para a decepção de todos, apenas um zumbido de baixa frequência, uma bola de luz roxa de ar ionizado se formando ao redor da nave que agora sem peso ascendia verticalmente a uma velocidade constante, como uma bexiga de hélio de uma festa infantil. Em desabafo, um repórter deixa escapar um suspiro - Maldita anti-matéria - que é seguida por muitas risadas dos colegas de profissão. Um homem na platéia não estava entretido. O lenço tirado do bolso do paletó revelava nas costas da mão a tatuagem do olho, ao secar o suor da cabeça careca.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Fantasmas de Marte - Capítulo 2

O OUTRO PREFÁCIO

O céu estava lindo, como sempre. O pequeno Sol e a atmosfera transparente mostravam estrelas 24h por dia. Os tons vermelhos e amarelos em constante movimento sempre fascinaram a pequena Anuket, que gostava muito de deitar de costas na grama baixa, na encosta de um morro baixo, mas que era o suficiente para se esconder de seu pai. Talvez o morro devesse ser um pouco mais distante, porque ainda sim sua paz interior era interrompida pelos gritos histéricos de Seth.

 - ANUKET, VOLTA JÁ AQUI AGORA! Eu juro pra você Ísis, um dia desses essa menina vai me matar. Meu coração não aguenta isso todo dia! Só por Rá.

 - Eu estou mais preocupada com seu fígado do que seu coração querido, porque você não me dá esse copo de cerveja e senta um pouco, eu vou lhe fazer aquela codorna assada que você adora. Vem querido, por Rá. - Disse Ísis, a mãe carinhosa e esposa fiel, talvez fiel de mais. Ísis tinha um bom coração, mas nunca se punha entre a bebedeira de Seth e os tapas e hematomas de Anuket. Esse pecado lhe corroía a alma por dentro, lhe roubando toda a sua beleza que tinha de solteira, lhe deixando com a aparência de idosa frágil e doente. Isso e a desobediência da filha alimentavam o ódio e a cólera em Seth, que sabia bem como afogar suas mágoas, e assim por diante eternamente.

Era uma comunidade rural, afastada do único centro urbano do planeta, Heliópolis. Não era comum que as pessoas viajassem, e se fosse necessário, uma comunicação formal deveria ser enviada pelo mensageiro até a capital, e aguardar a resposta oficial junto com o trajeto e as permissões oficiais. A palavra liberdade tinha outro significado para aquele povo, muito diferente do que nós estamos acostumados. Hoje em dia nós abertamente repudiamos e ofendemos nossos líderes, contestamos as ordens de nossos pais e patrões, escrevemos blogs e twitters malcriados. Não para essa gente, que se auto-denomina filhos do Sol Rá. Liberdade para eles significava apenas que eles poderiam permanescer vivos, desde que não houvesse motivo para perder esse privilégio.

Parece cruel, mas na verdade, é impossível o peixe dourado ter saudades do oceano se ele for nascido e criado no aquário. Não, apesar de tudo, era um povo muito feliz, grato a Rá pela sua existência e pelas dádivas que lhe eram (raramente) concedidas. Todos exceto uma pequena menina sonhadora, inocente mas muito esperta, a pequena Anuket, que nunca tirava os olhos das estrelas, imaginando como seria a vida dos outros filhos dos outros irmãos de Rá. E o fato de que a atmosfera era meio transparente e rarefeita, não ajudava a tirar a cabeça da menina das estrelas diurnas, mais um dos fatos que deixava Seth com sede, muita sede.

O céu nunca foi um problema para esse povo. Nunca tiveram ilusões científicas, como por exemplo se achar o centro do Universo, ou achar que são os únicos filhos de Deus. Mas o conhecimento só gera frutos racionais se for diretamente explorado, o que não era o costume dessa cultura. Ninguém tinha permissão de estudar nada além do Livro dos Vivos, a única fonte de conhecimento oficial do governo do Faraó. É claro que Anuket havia lido o livro todo, que aliás era tão pequeno que poderia ser lido em um ano, nesse caso 687 dias. Apesar da inocência da menina, ela sentia no fundo de sua alma que 90% do livro eram apenas propaganda, mentiras inventadas pelo faraó para se afirmar "A encarnação do Sol na Terra", o único e verdadeiro deus em forma de homem.

Anuket era mais esperta que isso, e ela achava que podia provar para ela mesma um dia. Por isso era tão fascinada pelo céu. Á noite, sua estrela preferida aparecia, o olho de Ankh, azul vivo, rodeada por uma bola cinza, que lhe dava a ilusão óptica de ser um olho que tudo via no Universo. Para os filhos de Rá, a vida era uma prova de lealdade a Deus Sol. Quem fosse um bom súdito, seria então levado a uma existência no paraíso de Ankh, o olho que tudo vê, e seria então educado nos segredos de Rá para servi-lo no Universo. Aqueles rebeldes e julgados incapazes, seria queimados no fogo de Hórus, tão grande e vermelho que poderia ser visto quase 18h por dia no céu, um eterno lembrete de obediência ao único Deus.

Só haviam dois motivos para Anuket voltar para casa e arriscar mais um hematoma, seu fiel companheiro, o gato Ammut, ou seu irritante e ao mesmo tempo interessante marido prometido, o mensageiro Real Khnum. Irritante porque Khnum era fiel ao faraó em todos os sentidos, uma máquina obediente que não tinha vontade própria, se o Faraó dissesse "morra", seu coração não ousaria a blasfêmea de dar nem mais uma batida. Mas para a frustação da jovem curiosa, o mecanizado cabeça-oca Khnum era um mensageiro Real, e isso significava que ele poderia viajar para qualquer lugar do reino a qualquer hora sem um passe oficial, e ele era a única fonte de informação disponível aos camponeses. Nessa hora, a única na verdade, Seth e Anuket se sentavam juntos à mesa, para ouvirem interessados a tudo que Khnum tinha a dizer. Ísis o tratava mais do que a um filho, o fazia de o próprio filho de Rá, e isso era um dos motivos de suas constantes visitas, além é claro da beleza sobrenatural de Anuket.

- Trago boas notícias do faraó Rá - todos os faraós se chamavam Rá. Na verdade, quando o faraó morria, imediatamente um de seus filhos ocupava-lhe o lugar, dando a ilusão que o faraó era imortal. - Devido à farta colheita de cevada este verão - Seth não esperou o jovem terminar, já pulou da mesa e agarrou Ísis pelas mãos, girando de alegria. - a ração de cerveja para o próximo período será 10% menos diluída. O pão conterá 15% menos fibra - Anuket suspirou aliviada, essa fibra de papiro é muito indigesta. Na verdade é a mesma que faz suas roupas e os cobertores. - E mais uma coisa. O festival da colheita terá um dia a mais, e por isso, eu tenho ordens de distribuir mais passaportes para os trabalhadores da limpeza.

Não havia honra maior para um camponês do que servir na equipe de limpeza do festival. Durante vários dias, toda a corte do faraó e os nobres do reino dançavam nus bebendo cerveja, dançando e fazendo orgias até caírem no chão inconscientes. Os servos da limpeza deveriam então entrar no salão correndo, sem encostar em nenhum nobre porque isso é pecado, punível com a morte, e evitar que o desmaiado se afogue no próprio vômito. O nobre deveria acordar então em sua cama, de banho tomado, devidamente vestido e pronto para voltar à ação. Honra essa que a pequena Anuket já recusou uma vez, e seria muito difícil escapar dessa vez.

 - Anuket, minha querida, eu me arrisquei muito ao pedir um favor para meu chefe. Eu pedi que ele incluísse seu nome no passaporte, para que assim você pudesse ficar em segurança durante o festival, sem medo de ser "possuída". - Os camponeses usavam o termo "possuído" para o servo que fosse "achado" por um nobre. Ele seria então marcado como seu escravo pessoal e levado até Heliópolis, e nunca mais seria visto. Mas um passaporte marcado com o próprio nome do servo é o mais próximo de liberdade que um camponês poderia sonhar, ser dono de si mesmo.

 - VOCÊ O QUE, SEU IDIOTA! - Anuket explode de raiva e corre até a porta mas então algo a faz parar. Um pensamento começa a nascer em seu brilhante intelecto. Uma imaginação, imagens em movimento, como nunca tinha visto antes. Ela se imaginou com o passaporte seguro, desviando dos milhares de nobres bêbados tarados, que sem pensar duas vezes a possuiríam de imediato. Ela se viu saindo discretamente do salão principal, em direção ao interior do palácio, portanto o passaporte e dizendo aos guardas que precisava de roupas limpas para um nobre qualquer. Nesse momento as imagens desapareceram, sua imaginação não era capaz de entrar no palácio, não sem nunca ter estado lá. Ela precisava estar lá. Imediatamente, e para a surpresa de todos, sua voz doce e suave retornou.

 - Desculpa, desculpa querido. Eu entendi outra coisa. Achei que você tinha dito que eu seria possuída pelo seu chefe, mas daí percebi que isso não faz sentido. HAHAHA. - Anuket força sua mais estúpida risada infantil, e o susto de todos se transforma em alegria, todos pensando que a menina bobinha estivesse com a cabeça nas estrelas, de novo. Sua cabeça estava sempre nas estrelas, sonhando sim. Mas nem por um momento Anuket seria considerada boba ou maluca, não. Ninguém daquele povo simples e ignorante poderia imaginar o que o destino, traçado pelo próprio Rá, faria dessa pequena menina a última esperança de um povo e seu futuro.

sábado, 8 de novembro de 2014

Fantasmas de Marte - Capítulo 1

Minha tentativa de livro, chamado "Fantasmas de Marte", escrito por mim Daniel Andrighetti Moraes, essa obra não está registrada em lugar nenhum, então se você for ganhar dinheiro com isso, pelo amor de Deus me manda um cheque e uma caixa de Heineken. Obrigado.

FANTASMAS DE MARTE

PREFÁCIO

     Na agitada e barulhenta conferência de imprensa, estão sentados à mesa toda a equipe científica da missão, prontos a se apresentarem.

 - Sr. Presidente, como o senhor responde às críticas da oposição dizendo que essa missão não passa de uma forma de glorificar seu filho nos anais da história desperdiçando dinheiro público?

O Presidente, político experiente como provam seus cabelos brancos, sabe que nunca se responde uma pergunta direta com uma resposta direta. Não, ele sabe melhor que isso para não ser pego na armadilha da imprensa. Tomou um gole de água, tirou um lenço do bolso, esfregou seus óculos e aguardou a ansiedade crescer nos olhares da imprensa. "Tubarões canibais", pensou ele em desabafo.

 - Sra. Minerva Van Atena, quero agradecer a todos por terem vindo aqui hoje para testemunhar esse dia histórico. História, Sra. Minerva, não é assunto político, nem econômico, nem para poucos privilegiados. A história da humanidade é feita por todos nós, dia a dia, ação por ação. Se a história tem problemas de memorização, se alguns fatos são lembrados errados e outros esquecidos, certamente meus opositores concordarão que não é culpa minha. (risos na platéia). Eu convoquei todos aqui para um único propósito. A história será feita, e esse fato é inevitável. Eu, não como presidente das nações unificadas de Gaia, mas simplesmente como o homem, Sr. Netuno Von Poseidon, farei tudo que for possível para que a história seja escrita da forma correta. No fim da história, a missão terá sido bem sucedida, e todos conhecerão a história da forma que ela realmente aconteceu. Isso é tudo sobre mim, vamos agora conhecer a equipe que será a primeira representação da humanidade a explorar e colonizar o planeta Marte, aquele que um dia foi vivo como Gaia, mas que pereceu por sua própria natureza violenta. Isso é tudo.

Como sempre, as respostas evasivas e misteriosas do presidente deixou a imprensa insandecida, alguns pularam as cadeiras e se acotovelaram para tentar extrair mais filosofia barata de um político liso feito sardinha, mas foram obviamente barrados pela segurança presidencial, com um certo esforço. Nos bastidores, o presidente não estava cansado, mas havia atuado de forma que a imprensa acreditasse assim, para que sua verdadeira intenção de não ser visto junto a seu filho fosse sabida por todos.

 - Sentem-se todos por favor. Silêncio. - Pediu um assistente anônimo. - Eu peço a todos que retornem a seus lugares para começar a rodada de perguntas aos membros da tripulação. Obrigado.

Como máquinas bem programadas, a imprensa imediatamente se organizou em uma platéia quase humana e civilizada, que poderia enganar o observador inocente que não soubesse melhor.

- Comandante Júpiter Von Zeus - Um dos repórteres salta de forma tão veemente que seus colegas sabem imediatamente, que assim como se fosse um programa de televisão, aquele que bate o botão primeiro pergunta primeiro - É verdade os boatos que o senhor usa o sobrenome de solteiro de sua mãe para tentar convencer a oposição política contra o fato que o senhor foi privilegiado por ser filho de Netuno?

Normalmente, essa pergunta seria respondida com uma chuva de socos na cara, depois de ter chutado a mesa e acotovelado a turma do "deixa disso", mas essa não é a primeira vez que ele ouve essa pergunta, e não é a primeira vez que ele faz papel de otário em frente às câmeras. Não. Dessa vez, só dessa vez, ele não iria cair nessa óbvia armadilha. Mas o pensamento de socar o repórter lhe deu um breve ataque de risos.

 - Sim, todos sabem que o sr. presidente é meu pai, todos sabem que minha mãe morreu quando eu tinha 8 anos, todos sabem que meu pai me mandou para uma escola internato militar, e que eu vivi toda a minha vida no exército. Mas eu pergunto a vocês. Existe algum provável candidato para minha posição que tem 22 anos de treinamento militar, medalha de honra da Câmara do Senado por bravura, Medalha Escudo de Atena por serviço exemplar no alívio do desastre do Vulcão Vesúvio, Troféu Apolo por vencer 19 das 21 modalidades olímpicas? Eu desafio o senhor, ou qualquer outro, a tomar o meu lugar. Próxima pergunta.

A imprensa sentiu o coice e perdeu temporariamente a malícia, preparando perguntas de nível mais intelectual.

 - Senhor Júpiter, os opositores da missão alegam que seria irresponsável desse governo colonizar Marte, que isso traria grandes déficits econômicos em sustentar uma colônia tão distante, e isso poderia trazer de volta a guerra na nossa sociedade, agora que conseguimos a muito custo a paz mundial.

Como o comandante bem disse, ele é uma fantástica máquina física, mas quando o desafio é um papel e um lápis, a mesa leva as cicatrizes. Sabendo do calcanhar de Aquiles do comandante, e como já foi previamente ensaiado nos bastidores, o geólogo Sr. Plutão Von Hades rapidamente desliga o microfone do comandante visivelmente irritado e toma a palavra:

 - Eu sou Sr. Plutão Von Hades, geólogo e membro da Academia Platão Von Sócrates de Ciências Universais, como os senhores bem sabem, um clube muito seleto, e uma grande honra, tanto lá como aqui. A dúvida de viabilidade econômica se resume a uma única pergunta: O que você deseja? Deseja ouro e pedras preciosas? Em Marte você poderia com um único transporte, derrubar os preços de Gaia em 1/3. Talvez você prefira comidas exóticas? Em Marte, o clima diferenciado combinado com nossa engenharia genética, poderíamos criar novas espécies de frutos e legumes sem a preocupação de impactar o meio ambiente, porque lá não tem nenhum ambiente. Vocês estão preocupados em sustentar seres humanos ociosos em outro planeta enquanto aqui vocês trabalham duro? Em Marte, nossa colonização será muito restrita aos melhores e mais capazes seres que a humanidade poderá oferecer, e em retorno, estaremos mandando de volta a Gaia os filhos desses escolhidos, educados sem distrações para serem perfeitos, como os Deuses.

Esse último comentário exagerado incendiou a platéia novamente, todos falando ao mesmo tempo, alguns ofendidos, outros curiosos com o olhar cheio de esperança. Para restabelecer a Paz novamente, interveio a única mulher da missão, embora seu papel seja fundamental para o sucesso de todos.

 - Com licença, um minuto de atenção por favor. - Sua voz doce e irresistível sempre foi sua arma secreta para esconder seu temperamento explosivo e imprevisível. - Eu acredito que meu colega quis dizer que em Marte não teremos de nos preocupar com regras e procedimentos porque vocês estarão seguros aqui em Gaia, podem ficar tranquilos. Eu sou a Dra. Perséfone, médica responsável pela saúde da missão, e como objetivo secundário da missão, é minha responsabilidade criar um conjunto de procedimentos que visa a manutenção prolongada da vida humana em Marte, incluindo a saúde física e mental dos colonos, a maternidade e o impacto do ambiente marciano nas crianças. Como mulher, também serei cobaia em meus próprios experimentos para melhor adaptação da humanidade em Marte. Talvez seja melhor deixarmos as perguntas para o final, ainda temos mais membros da tripulação para apresentar, a começar pelo meu querido papai, Dr. Saturno Von Cronos, biólogo e membro da Academia Platão.

 - Obrigado princes, quero dizer, filha. - Ela odeia ser chamada de princesa. Nos contos de fadas, a princesa sempre é uma coitada que precisa ser salva da rainha malvada. Não, com certeza Perséfone está mais para a rainha, mais ou menos malvada -  Meu papel na missão é simples. Marte está morto, ou apenas dormindo? Em nosso entendimento científico atual, entendemos por planeta morto aquele que não possui atividade em seu núcleo, o que será de responsabilidade do meu colega, Sr. plutão Von Hades. A partir das suas descobertas, eu poderei determinar se nós poderemos extrair calor, vapor, energia e minerais no núcleo do planeta, principalmente nutrientes. Como o próprio nome indica, os nutrientes são basicamente formados por nitrogênio, que infelizmente nossas sondas não tripuladas LandRover e LancerEvo detectaram em quantidades insuficientes para sustentar vida. Uma teoria provável diz que o Monte Olimpo, o maior vulcão do sistema solar, tenha expelido tanto gás que além de soprar a atmosfera para o espaço, levando consigo a água e o nitrogênio, também o vulcão teria servido como um foguete, tirando Marte de sua órbita, afastando-o do Sol. Minha teoria serve de base para o experimento que vamos ...

 - Obrigado Dr. Saturno Von Cronos - Interrompe o chefe da segurança da missão, por dois motivos. Primeiro se ninguém tivesse interrompido o Dr, a conferência duraria três ou quatro dias. Mas mais importante, sua função nessa missão é um segredo bem guardado, pois a reação popular poderia cancelar todo o esforço. - Eu sou Capitão Marte Von Ares, e como meu próprio nome diz, sou chefe da segurança.  - Esse comentário teria sido engraçado, mas a presença do Capitão é tão intimidadora que ninguém teve coragem de rir. Na verdade isso sempre acontece com as piadas do capitão, o que o deixa meio chateado. -  (limpa a garganta). Muito bem, meu papel é o de manter a ordem, detectar possíveis conflitos motivados por estress na tripulação, manipular as armas anti-meteoros e as ferramentas também, como por exemplo a britadeira laser que, se não manipulada corretamente, pode até furar um olho. (mais uma piada, zero risos.)

Após um breve silêncio, já que ninguém tem coragem de perguntar nada ao capitão, finalmente o bobo-da-corte se revela ao público, e bem na hora de irritar, como sempre, o sério Capitão.

 - Obrigado Capitão pela dica, atenção crianças, não corram com uma britadeira na mão, hein? - A sala explode em risadas histéricas, como uma panela de pressão entupida. O Capitão se sente muito humilhado toda vez que isso acontece, mas sempre se controla, engolindo a raiva, e rangendo os dentes. -  OK, já que ninguém me apresenta, Senhoras e Senhores, Damas e mais Damas, me liga, eu sou Sr. Baco Von Dionísio, mas podem me chamar de Baby.  - Ele sempre diz isso piscando um olho para a mulher mais linda do salão, e sempre arranca um suspiro e uma cruzada de pernas, parece mágica. -  Meu papel nessa missão é Gloss fotográfico, (faz som com a boca de bateria bum-bum tchi) -  a platéia responde imediatamente com uma salva de risadas, de repente o ambiente ficou mais leve e descontraído, parece um clube de comédia. -  Não, falando sério, eu sou o piloto da nave, e do transporte terrestre, e mais importante de tudo, sou solteiro meninas.

 - Han-Han  - limpa a garganta bem alto, tentando salvar um pouco da dignidade da missão. -  Obrigado Sr. Baco Von Dionísio, agradescemos pelas risadas. (O capitão deixa escapar um grunhido). Eu sou Dr. Hypnossono Von Emmanuel, arqueólogo, antropólogo e homem de religião.

A imprensa tem um faro para polêmicas e explode em perguntas maliciosas de duplo sentido.

 - Senhor Hypnossono, Qual religião o senhor vai oficializar em Marte? As outras serão permitidas?
 - Senhor Hypnossono, O senhor acredita que existem fósseis humanos em Marte?
 - Senhor Hypnossono, O senhor acredita em marcianos?

Desesperado pelo retorno do silêncio, o capitão irritado com Baco, como sempre, bate seu pesado punho na mesa, derrubando alguns copos de água e imediatamente silenciando a imprensa como se o  Deus Vulcano Von Hefesto em pessoa tivesse aparecido para levar embora suas almas medíocres.

 - Obrigado Capitão, como eu ia dizendo, sou antes de mais nada um cientista, também sou membro da Academia de Ciências Universais e meu trabalho não é olhar para o passado de Marte, mas sim para seu futuro. Aqui em Gaia, olhamos um site arqueológico como uma janela para o passado, não somente desenterrando ossos, mas mais precisamente trabalhamos como um detetive, como se fôssemos resolver um crime. Suponhamos que um esqueleto seja encontrado segurando uma colher de latão. Devemos responder uma série de perguntas. Porque ele segurava uma colher? Ele estava comendo e morreu engasgado? Teve uma briga e a única arma de defesa foi a colher? Essa colher de latão foi feita na região ou importada de mercadores? Quem fez a colher? Em Marte, não haverá esqueletos nem colheres, mas ao contrário, nós um dia seremos os esqueletos de Marte. Meu papel é simples. Eu devo analisar todas as consequências de todas as decisões da missão, baseados em minha experiência com civilizações passadas, para ter certeza que não estamos novamente cometendo os mesmos erros do passado.

Um repórter se levanta devagar, ajeitando a gravata, os olhos fixos no Capitão. O menor movimento do Capitão com certeza acabaria em tragédia, uma pilha de corpos de repórteres pisoteados tentando passar pela pequena porta da saída. Sabendo disso, o Capitão permanece como uma estátua, na melhor tradição militar, seu olhar fixo no vazio, para frente, cabeça ereta, respiração controlada, seus olhos piscam a intervalos regulares. Finalmente, o repórter, engolindo o choro, começa a gaguejar:

 - Senh, (afina a voz uma oitava abaixo), Senhor Hypnossono, poderia, se, se possível, claro, nos dizer mais, isto é, se não for segredo, mais sobre seu lado religioso? Senhor? Por Favor? (este último por favor na verdade foi um pedido aos Deuses para pouparem sua vida).

 - Claro, mas infelizmente, por motivos de segurança da missão (Capitão acena discretamente um positivo com a cabeça), não posso dizer que tenho uma religião específica. Veja bem, cada religião de Gaia tem suas próprias crenças, seus próprios rituais, e mais importante, cada uma delas tenta roubar os fiéis da outra, em uma eterna luta por mais poder. Meu interesse, e função nessa missão, não é levar o poder até Marte, mas servir como representante de toda a raça Humana em nome dos deuses, e pedir que eles nos permitam suas bênçãos para o sucesso da missão. Só isso, e garanto a vocês, que nenhum grupo religioso específico será favorecido em Marte, sob minha responsabilidade. Eu sou um estudioso de todas as religiões de Gaia, se não fosse assim eu não teria sido aceito na Academia, que todos sabem, tem uma política científica muito rígida. Eu posso garantir a vocês, que todas, eu repito, todas as religiões tem uma raiz comum, tem uma origem comum, uma semente. É essa partícula fundamental que eu pretendo plantar em Marte, livre da política e da corrupção dos habitantes de Gaia.

Esse último comentário provocou um burburinho na imprensa, forçando a finalizar a coletiva e dispensar todos, que saíram para os bastidores. Ao fundo da sala, uma figura sombria observa tudo com atenção, mas sem se manifestar. Nas costas de sua mão, a tatuagem entrega sua identidade a todos, o olho de Hórus Von Osíris, o mais antigo e mais poderoso culto religioso de Gaia. Seus seguidores fanáticos nada temem, nem mesmo a morte. São temidos e respeitados, porém ao mesmo tempo, o medo das outras religiões em enfrentar o olho criou uma situação difícil de resolver. Todos unidos teriam, em teoria, a força suficiente para acabar com o olho. Mas a verdade é que ninguém é unido a ninguém. Alianças temporárias sempre acabam em traição e banho de sangue, e as poucas mortes não naturais do planeta, enchem as manchetes das notícias.

- Ainda bem que acabou - diz Perséfone -, achei que nós seríamos massacrados por perguntas sem resposta. Bom, vamos voltar ao centro de treinamento de astronautas e dormir a tarde toda.(dormir seria a última coisa na mente de todos, um último dia em Gaia. Mas seu pai estando presente, seu comportamento deveria ser sempre exemplar, como de uma Princesa. Para sua surpresa, seu pai diz exatamente o que ela queria ouvir.)

 - Filha, hoje é nosso último dia em Gaia, vamos aproveitar da melhor forma. Eu estarei retornando ao zoológico, para me preparar psicologicamente. Estou tenso, e o cheiro de esterco sempre me anima (piada interna de biólogo, não precisa fingir que foi engraçado).

 - Bom papai, como médica, acho que irei até a creche ver as crianças uma última vez. A gente se vê amanhã.

Imediatamente Perséfone toca as costas da mão do Sr. Plutão, que disfarça seu contentamento ao entender a mensagem subliminar. Todos se separam então, cada qual a seu destino, tentando ao máximo levar uma vida normal uma última vez. Em Gaia, nesse período de paz, as ruas são seguras à noite, desde que se saiba navegar pelo labirinto de igrejas e religiões sem chamar muita atenção.